Flavia Guerra

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Opinião

'Coringa 2' mexe em time que estava ganhando e surge como musical

"Teria que assustar como o primeiro assustou. Teria de soar audacioso e estimular o público como algo diferente. Como a gente poderia fazer algo não esperado como o primeiro, ainda que fosse uma sequência?" Afirmou o diretor Todd Phillips em conversa com jornalistas no Festival de Veneza, onde o filme acaba de fazer sua première mundial, ao comentar o maior desafio de encarar um "Coringa 2" ou "Coringa - Delírio a Dois".

A saída foi, a partir de muita discussão e trabalho, obviamente, e de um sonho que Joaquin Phoenix teve, fazer um musical. Quer dizer, um musical, ma non troppo. Ou seja, "Coringa 2" é um musical, mas também não é. É uma sequência, mas também não é uma sequência que repete o sucesso do primeiro filme ao também repetir a fórmula. É um drama psicológico, isso sim, que traz o vilão encarcerado, claustrofóbico, humilhado e violentado por um sistema que quer que ele desapareça do mapa.

Ninguém nunca amou de fato Arthur Fleck. Talvez sua mãe, que ele também matou, além das outras cinco pessoas no final do primeiro longa, crimes que o levaram a ser encarcerado na ala prisional do Arkham State Hospital.

Só que desta vez, Coringa/Joker se vê diante de sua sombra. Seria ele o vilão com uma supra inteligência e um líder natural, ainda que psicopata? Ou somente um homem perturbado, doente, enfrentando consequências de traumas severos na infância que fizeram com que, para sobreviver, ele fragmentasse sua psique? No processo de se preparar para se defender do julgamento que se aproxima, sua advogada tenta provar a segunda hipótese e conseguir um tratamento adequado para ele.

No caminho, ou no Arkham Hospital, ele encontra o verdadeiro amor em meio a um mundo violento, cínico, sombrio, descrente. Ainda que mitômana que deixa muitas pontas soltas, inclusive sobre um detalhe crucial para a trama, Lee Quinzel (Lady Gaga), que não se chama Harley Queen, é aparentemente esse amor verdadeiro que tem real carinho e fascínio pelo Coringa. Já por Arthur e suas fragilidades, nem tanto. Para Joaquin, o filme é justamente sobre seu personagem encontrar também o amor e alguém em um mundo que não o quer.

Lady Gaga e Joaquin Phoenix no set de "Joker: Folie a Deux"
Lady Gaga e Joaquin Phoenix no set de "Joker: Folie a Deux" Imagem: Gotham/GC Images

Para o espectador que esperava ansiosamente que "Coringa 2" repetisse o tom de thrillers de Martin Scorsese quando encontram o universo dos quadrinhos, o filme pode ser ou surpreendente ou decepcionante. Como disse Phillips, era para ser assim, pois "Joaquin não faria uma sequência pela sequência". De fato, nada mais anti-Joaquin Phoenix do que se acomodar no lugar de sucesso do personagem que deu a ele o Oscar de Melhor Ator em 2020. Temperamental, mas profundamente entregue a tudo que faz, Joaquin não se importa em perder muitos quilos, envelhecer realmente para um papel que exigiu tanto dele, bater com a cabeça, apanhar, ser humilhado.... Mas não aceita repetições apenas pelo sucesso tanto financeiro quanto de público e crítica.

Curioso que justamente a ideia inicial de trazer o universo da música para contar a história do personagem partiu do ator, que teve um sonho, contou a Phillips, que comprou a ideia e mergulhou fundo nas músicas que ajudaram a formar o caráter do personagem.

"A gente queria ser a música que Arthur ouvia com sua mãe, contar também a história que o formou. E o tempo das músicas era algo da infância dele", observou o diretor, que também revelou para a imprensa que muito da ideia de realizar um musical veio de um sonho de Joaquin. Além disso, as canções que o ator canta com Gaga também contam o universo da paixão que vivem. Músicas como "What the World Needs Now Is Love", escrita por Hal David e com música de Burt Bacharach. Ou declarações de amor como "Close to You", do Carpenters, Frank Sinatra, entre outras grandes como "If My Friends Could See Me Now," "That's Entertainment!", "For Once in My Life, esta, de Stevie Wonder, cantada em alto e bom som para dizer que finalmente ele tem algo a que se apegar, que o ilumina, que dá sentido à sua existência trágica e sem graça. E não. Não é a violência nem dominar o mundo, mas o amor.

Diante de um repertório digno de um crooner, a escolha de Gaga para dividir a tela e o microfone com Phoenix foi mais que natural e acertada. Cantora, música e atriz, ela tem a voz potente e uma figura que completa a fragilidade de Arthur e casa com a ironia de Joker/ Coringa.

De canção em canção, eles vão construindo o amor que começou com um cruzar de olhos na aula de canto do Arkham, onde ela também era uma interna (mas não na ala dos detentos). Ela conta sua versão dos fatos, diz que assistiu 20 vezes ao filme incrível que fizeram sobre ele depois dos assassinatos, que cresceu no mesmo bairro pobre que ele. Ele acredita e vai, muito diferente do Coringa que é opressor e tem uma relação tóxica com a Harley Queen de Margot Robbie, sendo ele o seduzido e, talvez, iludido por Lee. Se ela mente, se ela inventa, se ela aumenta muito ou pouco... Nada disso fica muito claro. E é bom que seja assim. Em uma narrativa irregular, com ótimos momentos tanto musicais quanto tensos, a dúvida é um fator a favor da trama.

Cabe, novamente, ao público, decidir se embarca. "Sinceramente, a gente queria que cada um de vocês decidisse por vocês mesmos o que o filme significa para vocês em vez de decidir por vocês", disse Gaga em Veneza.

Difícil comprar a ideia. "Coringa 2" é, sim, um musical, em que as canções, como já dito, permeiam e constroem a trama. Este, aliás, é um ponto positivo. As letras não estão ao acaso no filme. Os arranjos tampouco. Não se tratam de números coloridos, megalomaníacos, grandiosos. Espelhando o imaginário doentio dos personagens e, principalmente, o de Joker, o tom é mais grave, os números são mais sóbrios até quando em situações alegres imaginadas por eles (afinal, musicais são sobre o que se imagina e não necessariamente o realismo, claro).

Quem se dispuser a não se acomodar em "time que estava ganhando" do primeiro filme pode gostar da proposta, embarcar na viagem e se surpreender mesmo não sendo grande fã de musicais. Quem não é grande fã do gênero e não está disposto vai enxergar as arestas que o filme tem de fato.

Mas esta liberdade de descobrir que filme estavam fazendo, mesmo com um orçamento de milhões, aparentemente foi a tônica das filmagens. Difícil comprar a ideia, mas os três defenderam que foi de fato assim.

"Aprendi muito que ir para o set com uma noção pré-concebida do que faríamos é a ideia errada. Todos nós realmente aproveitamos o momento e o caos de tudo. Esta é uma história tão interessante, assim como a forma como Todd conta essa história. Pense em você imaginando como é este filme. E depois você vai assistir e entende que você nunca teria adivinhado sozinho. E para fazer isso possível, a gente tinha de descobrir todo dia qual era a verdade, qual era o momento honesto que precisa ser visto, qual era a história", completou a cantora e atriz.

Por falar em trama, depois de um "recap" do primeiro filme em versão animação da Warner logo no início, a cortina se abre (dando o recado de que veremos um espetáculo) e encontramos Arthur Fleck vivendo os dias duríssimos da prisão e aguardando ser julgado por seus crimes como o Coringa. Enquanto luta com sua dupla identidade, oscilando entre o orgulhoso Joker/ Coringa e o frágil e depressivo Arthur ele não só encontra nesse ambiente improvável o amor verdadeiro, mas também descobre a música que sempre esteve dentro dele.

É com esta premissa que Gaga entra como o furacão Harley Quinn na vida de Arthur. O amor condenado da "folie a deux" (a loucura ou crimes cometidos por duplas, casais, principalmente no mundo do crime), que eles vivem chama atenção, traz alguma humanidade a este mundo sombrio e frescor à trama. Ainda assim, tanto a personagem quanto Gaga poderiam ter mais tempo de tela, uma história mais bem desenvolvida, participação mais decisiva e marcante. Phoenix, como sempre, está sublime, mesmo não tendo "voz" como Gaga. Seus números são quase como shows intimistas de jazz ou stand ups em clubes pequenos de Nova York (ou Gotham). Gaga, figura tão solar, traz a loucura de Harley Queen, mas curiosamente tem uma energia mais estável.

"A forma como tratamos a música neste filme é muito especial e cheia de nuances. Não é exatamente um musical. É muito diferente. A forma como a música entra é para dar aos personagens a forma que eles precisam dizer porque somente os diálogos não são suficientes. E como Joaquin disse a gente fez muitos dos números ao vivo e o pianista estava com a gente no set e funcionava como um ator, fora do quadro, na cena conosco", explicou a atriz.

"E a gente trabalhou duro na forma como cantamos. Para mim, foi muito sobre como de certa forma desaprender, esquecer a técnica de respiração. E as canções saíram dos personagens e, como Todd sempre disse que Arthur tinha música dentro dele. E eu só queria ajudar a tornar a ideia de Todd real, sobre o que seria essa música", completou Gaga.

A música, e o tom, de "Coringa 2" é grave, densa, mas o personagem muitas vezes se parece um fiapo da figura ameaçadora, mas apaixonante do primeiro filme. Ao mesmo tempo, sua fragilidade e sua fraqueza física e mental, deixam a dúvida se este universo em desencanto precisa, como a canção, de fato, de amor e não da violência que entreteve o público e anunciou uma sequência espetacular. Fato é que Phillips e Phoenix não jogam para a torcida. Eles se divertiram no processo e, se vão agradar ou se tornar anti-heróis, em breve o público de todo o mundo dirá.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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