Flavia Guerra

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Opinião

'Ainda Estou Aqui' faz da história de uma família a história do Brasil

"Você acha que não nos contando nada vocês estavam nos protegendo?", pergunta Eunice Paiva (Fernanda Torres) a Baby Bocayuva (Dan Stulbach ), sócio e um dos melhores amigos de Rubens Paiva (Selton Mello), seu marido em uma das cenas de "Ainda Estou Aqui".

Alerta de Spoiler Splash
Alerta de Spoiler Splash Imagem: Arte UOL

O filme de Walter Salles chega aos cinemas brasileiro nesta quinta-feira (7), depois de estrear no Festival de Veneza, onde levou o prêmio de Melhor Roteiro, e levar o Prêmio do Público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Na cena em questão, Eunice acabara de saber da morte de Rubens pela ditadura militar, em janeiro de 1971, e tentava, sem ter um atestado de óbito, resolver questões práticas da vida. Ela tinha cinco filhos para criar, nenhum documento e não podia nem movimentar a conta conjunta com o marido no banco.

O governo de Emílio Médici nunca admitiu ter assassinado o engenheiro depois de levá-lo de sua casa, no Rio de Janeiro, para depor e nunca mais trazê-lo de volta.

Ex-deputado, que já havia se exilado e que voltou ao Brasil para morar com a família em uma casa ampla e acolhedora na rua da praia no Leblon, que serve como um personagem importante no filme, Rubens Paiva estava, de alguma maneira, lutando contra o regime imposto, mas, ainda que Eunice não fosse nada ingênua e desconfiasse a cada ligação que o marido recebia, ela foi mantilha alheia ao que de fato acontecia e descobriu da pior forma possível.

Baby é quem também explica como era impossível, para ele, Rubens e outros não ajudar, afinal, era um círculo de amigos, um que trazia uma carta de alguém que estava detido a um parente, outro que a entregava. Era uma rede de apoio que mantinha uma parte da sociedade brasileira minimamente íntegra em um momento em que garantias mínimas de respeito ao cidadão viraram pó.

Ao contar a história de Eunice e da família Paiva, "Ainda Estou Aqui" conta a história de muitas famílias que nunca puderam enterrar seus mortos. Conta também a história de um país, cuja História (a com H maiúsculo) é marcada pela violência e abuso de poder.

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Há muitas chaves para se ler tanto o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens, no qual o filme se baseia, quanto o filme de Walter Salles, mas uma de fato ressoa forte nos dias de hoje: o fato de se esconder ou tentar ficar alheio não vai proteger ninguém e muito menos a família de ninguém dos avanços do totalitarismo.

Festival de Veneza: "Ainda Estou aqui?, de Walter Salles leva o prêmio de Melhor Roteiro
Festival de Veneza: "Ainda Estou aqui?, de Walter Salles leva o prêmio de Melhor Roteiro Imagem: Stephane Cardinale - Corbis / Getty Images

"Ainda Estou Aqui" se passa principalmente nos anos de chumbo e se estende até os anos 1990 e, por fim, nos dias atuais. Construído meticulosamente por Heitor Lorega e Murilo Hauser, o roteiro começa nos colocando na rotina da família pouco antes da tragédia ocorrer, quando a casa dos Paiva estava sempre cheia de amigos, tanto dos pais quanto dos filhos (e Walter Salles era um desses).

Rubens era um pai acolhedor, que, entre um trabalho e outro, uma brincadeira com um filho e outro, recebia ligações que Eunice suspeitava sobre o que eram, mas que nunca questionava.

Quando os agentes da polícia batem à porta em um dia de janeiro para levar Rubens para depor, já estamos suficientemente afeiçoados a essa família e a amputação que se segue chega a doer. E dói mais porque é o silêncio que impera.

Eunice e a filha mais velha também são levadas para depor. A filha volta para casa. A mãe fica 12 dias presa e, quando volta, não faz alarde. Toma um banho que marca essa nova fase da vida, em que terá de encarar a realidade, a ausência do marido, os filhos, ser o alicerce que sustenta a família.

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A tragédia que toma conta da vida de Eunice por si só é um grande drama. Mas, como Fernanda Torres observa sempre, sua mãe, Fernanda Montenegro, lhe disse que na tragédia não há espaço para o melodrama. E Walter Salles entende isso como ninguém. Tudo é sóbrio, econômico, contido em "Ainda Estou Aqui".

Eunice é uma mulher e mãe trágica, que não faz drama algum, que faz os ajustes necessários para seguir criando os filhos, que volta a estudar, torna-se advogada e defensora pioneira dos direitos indígenas, luta até conseguir o atestado de óbito do marido, luta até que o tempo começa a levar talvez o que ela tem de mais precioso: a memória. Mas, desde sempre, faz questão que os filhos sorriam na foto e jamais sejam em público vítimas da história.

Fernanda Torres em "Ainda Estou Aqui", filme de Walter Salles
Fernanda Torres em "Ainda Estou Aqui", filme de Walter Salles Imagem: Alile Onawale

Tudo isso não é derramado em diálogos didáticos, mas sim entendidos em cada entrelinha do roteiro, da direção de fotografia de Adrian Teijido, que trabalha a textura na medida para que se veja uma história que, mais que contada, está sendo lembrada, na trilha sonora que não nos empurra para sentir nada antes do momento exato.

Mas, principalmente, é na atuação contida de Fernanda Torres, que viver uma dor represada, sente uma raiva que serve de combustível para lutar, que "Ainda Estou Aqui" encontra sua maior força. A atriz, que há tempos não fazia um drama no cinema, reencontra Walter Salles (com quem filmou "Terra Estrangeira" em 1994) e sua potência dramática e trágica.

Walter Salles cortou da edição final todas as cenas em que Eunice chora. E fez bem. O grito contido, suas lágrimas explodem não na tela, mas no espectador, que se vê também obrigado a seguir firme com ela até o fim. Habilidosamente construído, "Ainda Estou Aqui" não é, no entanto, trabalho manipulador para fazer o público chorar. É um retrato honesto, um livro de memórias, uma lembrança muito pessoal, mas universal, de Walter Salles, que, assim, consegue o raro feito de ser universal.

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A história que corta a família de Eunice também acerta em cheio a história de um país e acerta em cheio um Brasil, e um mundo, que teima em fingir que nada aconteceu a cada avanço da sombra do totalitarismo que faz sombra à nossa frágil democracia assim como ao ecossistema sólido, mas também frágil da família Paiva. Feito os agentes da ditadura que acompanharam na casa da família Paiva quando Rubens foi levado, fechando cortinas, portas e janelas.

Soa melancólico e o choro de muitos é uma soma do choro pelo drama de Eunice, da família e da tragédia que é o Brasil. O sorriso ao se conhecer a história desta heroína e encontrar nela um alicerce a que se apegar também se mistura com a fé em um Brasil, e um mundo, em que o futuro, quem sabe, será mais feminino.

Encontro com o público

"Um filme nunca está pronto. O filme só se completa quando o espectador vê o filme projetado e completa o filme, e o somatório desses olhares é o que gera o prêmio mais lindo do cinema, que é o prêmio do público", disse o cineasta Walter Salles para Splash logo após vencer o prêmio do público na Mostra SP 2024.

Pode parecer mera simpatia para agradar, mas, analisando a frase com olhar crítico, de fato "Ainda Estou Aqui" finalmente vai completar sua trajetória que já é de imenso sucesso. E como bem comentou Fernanda Torres ao falar do filme, ele reverbera nas plateias de Veneza a Nova York, passando pelo Museu de Hollywood, onde foi exibido na semana passada.

É agora o crivo do grande público brasileiro que "Ainda Estou Aqui" encara, com a estreia no país. A crítica especializada tem ouvido desde Veneza a pergunta: "Mas o filme é bom mesmo"? Sim, é!

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Obviamente que é sempre ver para crer e entender, mas Walter Salles construiu um filme sólido, honesto, que, ao contar a história de uma família, conta não só a história de um período específico do Brasil, mas reverbera nos dias de hoje e faz pensar no Brasil de amanhã, diante de um mundo em que o discurso de ódio e a intolerância ganham as redes sociais, a opinião pública e até as eleições.

Não por acaso Fernanda Torres também disse para Splash que esse é um filme de amor em um mundo de ódio. É exatamente isso. É um grito contido que Eunice Paiva, a personagem principal, nunca deixou que saísse. E o filme, em ondas, tomando seu tempo, mas sem nunca parar, explode esse grito nos corações e mentes da plateia.

O choro, a revolta e a vontade de gritar para o mundo a história de uma família, mas de tantas que nunca encontraram justiça inundam o público. E o brasileiro finalmente poderá confirmar se esta onda vai só crescer, oxalá, até o Oscar 2025. No entanto, não faz a menor diferença se a indicação não vier. "Ainda Estou Aqui" é, antes de tudo, uma história para o brasileiro se ver na tela.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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