Flavia Guerra

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Reportagem

Nostálgico sem negar o futuro, 'A Última Sessão' é carta de amor ao cinema

"Obrigada por iluminar o caminho: Irmãos Lumière, Eadward Muybridge, David Lean, Stanley Kubrick, Andrei Tarkovsky". É com esse agradecimento que começa o filme indiano "A Última Sessão", que estreou na última quinta-feira (12) no Prime Video.

O aviso parece o prenúncio de um filme que vai não só homenagear, mas também fazer referência às obras desses pioneiros e mestres que, cada um a seu modo, construíram novos capítulos na história do cinema.

Pela frase, seria fácil também julga "Última Sessão" como um filme cabeça, para cinéfilos eruditos, capazes de identificar a cada sequência as homenagens que o cineasta indiano presta a esses grandes nomes.

No entanto, mais que uma referência a pioneiros, linguagens e obras, " A Última Sessão" é um filme popular, do tipo que conquista até o menos cinéfilo dos espectadores. Prova disso foram as sessões que o cineasta Pan Nalin realizou em Wall Street, quando ouviu do público formado por homens de negócio que se tratava de um filme sobre empreendedorismo.

"Eles não perceberam as homenagens e referências. Eles foram atraídos para a história. Então, é disso que eu gosto, porque era isso que pretendíamos. Que você não precisa conhecer o cinema para poder curtir a história sobre como nos apaixonamos por filmes, como descobrimos nossa própria paixão. E no final, o que acontece com o personagem. Então, essa deve ser a primeira camada obrigatória. Mas se você conhece cinema, então pode ler todos os outros sinais", declarou o cineasta em conversa com Splash durante o Red Sea Film Festival, na Arábia Saudita, em 2022.

Pan Nali, de "A Última Sessão"
Pan Nali, de "A Última Sessão" Imagem: Divulgação

De fato, se pudermos chamar de empreendedorismo o fato de o protagonista, o pequeno Samay, lutar contra as circunstâncias para continuar não só indo ao cinema, mas também trazer o cinema para o pequeno vilarejo em que mora, em uma região rural do oeste da Índia, realmente é um filme sobre empreender.

Aliás, Samay é vivido com maestria e naturalidade por Bhavin Rabari, descoberto em um teste que reuniu mais de 3.000 meninos. Pan Nalin não queria a afetação que, em geral, as crianças que atuam nos filmes de Bollywood trazem. Encontrou no olhar curioso de Bhavin seu Samay perfeito, que mistura malícia e inocência com equilíbrio raro de ser ver.

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O menino tem somente nove anos, vive em uma casa modesta com a família que, ainda que pertença à casta mais alta, os brâmane, perdeu tudo em uma questão de herança e tem de viver com o dinheiro que o pai ganha preparando chai na estação de trem para os passageiros que chegam e vão durante as paradas.

É Samay quem vende o chá com carisma e simpatia. Duas características, somadas a uma boa dose de rebeldia, que ele usa para enfrentar o pai que considera que cinema não é digno de sua casta e encarar a falta de dinheiro. A astúcia, ele usa também para conseguir assistir aos filmes que passam no cinema da cidade vizinha, onde ele estuda, ficando amigo do projecionista, que o deixa ver as sessões em troca da marmita ("a melhor do mundo") que a mãe do garoto prepara todos os dias.

Fábula com os pés no chão, inspirada na própria infância de Pan Nali, "A Última Sessão" foi indicado da Índia ao Oscar 2023, mas, infelizmente, não avançou na competição. Talvez porque quem o assistiu parou na sinopse e confundiu um filme cheio de camadas com "mais um filme nostálgico sobre cinema".

Engana também quem pensa que se trata de um filme saudosista que emula filmes como "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore, somente pelo prazer da nostalgia e que usa a Índia como um cenário novo para uma velha história. "A Última Sessão" não nega o prazer e quão indelével da memória é a descoberta do cinema, de seu poder de trazer um mundo para dentro de uma sala escura, em uma experiência que é ao mesmo tempo coletiva e profundamente individual.

Porém, Nalin tampouco nega os avanços que chegam com o advento do cinema digital em uma Índia que se transforma e em que a modernização passa por cima das tradições com a mesma velocidade com que o trem vai passar pela vila de Samay, onde o novo trem não vai mais parar.

Bhavin Rabari, protagonista do filme 'A Última Sessão'
Bhavin Rabari, protagonista do filme 'A Última Sessão' Imagem: Divulgação
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"Gosto da sinceridade das pessoas, que são capazes de encontrar sua própria história enquanto assistem a "A Última Sessão". E vimos que esta é uma história muito local que se passa no interior remoto do oeste da Índia. Você vê que os personagens falam idiomas muito locais, não falam o idioma oficial nacional. Mas tenho constantemente sido surpreendido pelo público. A gente continua dizendo que esse clichê é universal, mas quando você está realmente lá, com o público, você percebe que, sim, é universal", diz Pan Nalin.

A vida de Samay e sua família vão mudar, o cinema também, a forma de ver filmes vai mudar, mas a conexão que criamos com as histórias é ancestral e permanece. Como um bom empreendedor, Samay/Pan Nalin sabe que tudo está em constante mutação. Se o suporte mudou, as histórias continuam sendo feitas de sonhos, luz e muito trabalho.

É um filme encantador, repleto de camadas, cores, sons, luzes e a certeza que histórias vão continuar sendo contadas e que gerações vão se apaixonar pelo cinema, seja do tamanho que a tela for, mas muito melhor se for em uma tela grande e uma experiência coletiva.

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