Flavia Guerra

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Opinião

'O Auto da Compadecida 2': nostálgico, mas atento ao Brasil de hoje

25 anos depois de "O Auto da Compadecida" ser filmado, o hoje clássico do cinema brasileiro ganha sequência que traz de volta Selton Mello e Matheus Nachtergaele em um reencontro de Chicó e João Grilo que evoca a nostalgia e também um Brasil contemporâneo.

Dirigido por Guel Arraes e Flávia Lacerda, "O Auto da Compadecida 2" atualiza a história dos personagens e respeita o universo de Ariano Suassuna, mas introduz novos temas e personagens, como Clarabela (Fabíula Nascimento ), Coronel Ernâni (Humberto Martins), Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Antonio do Amor (Luís Miranda e Joaquim Brejeiro (Enrique Diaz), além de trazer Rosinha (Virginia Cavendish), em uma nova fase empoderada e apaixonada, e Taís Araújo como uma Compadecida que é grande símbolo de amor e sagacidade.

Da comédia ao drama

Escrito por Arraes, Jorge Furtado, João Falcão e Adriana Falcão, o longa brinca com gêneros, trafega da comédia ao drama, com tons de fábula muito brasileira sem abrir mão do universo farsesco de Ariano Suassuna. Aliás, o autor que faleceu em 2014 aprovou o filme de 2000 e sua família acompanhou de perto e validou o longa que chega aos cinemas em uma data tão simbólica como o Natal.

"O Auto 2" bebe na fonte do original, obviamente, além de em outras obras de Suassuna, como " O Auto da Boa Preguiça", sem perder de vista jamais o mundo real, como sempre fez o escritor, que buscou em cursos imemoriais dos píncaros e figuras da cultura popular brasileira sua grande inspiração.

"O Auto 2" conta um novo conto e acrescenta um ponto a essa história. Aposta no universo seguro já construído, mas se arrisca ao atualizar tanto o caldo social e político de Taperoá quanto a trajetória de seus personagens. Para completar, dá uma piscadela ao cinema documental em uma cena que quase quebra a quarta parede ao dizer muito, sem diretamente discursar: " João Grilo e Chicó são muito reais."

Clarabela (Fabiula Nascimento) e coronel Ernani (Humberto Martins) em "O Auto da Compadecida 2"
Clarabela (Fabiula Nascimento) e coronel Ernani (Humberto Martins) em "O Auto da Compadecida 2" Imagem: Divulgação

Acho que esse filme novo faz um equilíbrio interessante. Apesar de homenagear e ser um retrato de Adriano, os nossos roteiristas são geniais. E assim, 25 anos depois, eles têm muito pano na manga para entregar. Então, o roteiro já era muito emocionante desde o início. Assim, a gente sacou que a comédia mais bufa ia partir para um outro tipo, também de comédia, e passar por outras emoções
analisou Nachtergaele quando questionado por Splash sobre as nuances e temas que o longa traz, principalmente em seu terço final.

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"Temos a amizade como um tema muito importante e tem o fato de se aceitar que a vida também emociona também. Às vezes, pode te fazer chorar e exceder e tal. Foi desafiador porque a gente é apegado ao outro mundo e a gente sente a responsabilidade de fazer o 2", completou.

Na trama de "Auto 2", encontramos uma Taperoá mais fabulesca e menos realista (isso na direção de arte, locação e fotografia, pois foi filmada em estúdio), um Chicó mais velho mas não menos medroso e charmoso. Ele ganha a vida contando a história de João Grilo e o Milagre que fez ressuscitar o amigo. João Grito, por sua vez, desapareceu e virou lenda.

Humberto Martins vive o Coronel Ernani em o Auto da Compadecida 2
Humberto Martins vive o Coronel Ernani em o Auto da Compadecida 2 Imagem: Divulgação/Laura Campanella/H2O Films

A narrativa e os personagens

A cidade agora é dominada pelo Coronel Ernani (Martins), que controla o poço que fornece água à região castigada pela seca. Já o kitsch e nada bobo Arlindo (Sterblitch) tem uma rádio e domina a comunicação e a narrativa da cidade. Ao mesmo tempo, anuncia na própria rádio os produtos que são vendidos em sua loja de eletrodomésticos. Um belo dia, chegam em Taperoá novos e antigos personagens que revolucionam a ordem e a paz vigente.

Primeiro chega Clarabela (Fabíula), filha do coronel ErnanI, que foi para a cidade grande estudar artes, sua paixão, mas volta apaixonada pelo campo e propaga para todos os cantos que a real beleza e riqueza estão no interior. Tão irritante quanto divertida, é a personagem que traz influência de outra obra de Suassuna, "O Auto da Boa Preguiça".

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Já João Grilo volta para reatar a amizade com Chicó e os dois protagonizam cenas que fazem valer o reencontro. Se Chicó corre o risco de perder o ganha-pão com a volta do amigo que era lenda, João Grilo já chega com sua malandragem e inventa um novo plano para escapar da pressão de ter que emprestar sua popularidade a um ou outro candidato a prefeito da cidade: Ernani e/ou Arlindo.

Para auxiliá-lo, Antonio do Amor (Miranda) chega e bagunça deliciosamente ainda mais este circo em que os palhaços têm muito do povo brasileiro. E a humanidade que Selton e Matheus dão aos dois personagens é ainda hoje o grande trunfo de " O Auto da Compadecida".

O Matheus trouxe uma coisa que é interessante: o Chicó agora é um poeta. Ele sempre foi uma criança grande e é por isso que a gente adora também. Mas eu senti que ele ganhou uma maturidade do jeito dele, mais ganhou e se reconheceu também como poeta. Olhou para cima, tem uma reflexão interna
comentou Selton Mello.

"Nesse sentido, acho que é bonito. Eu sou agora mais velho. Ele também evoluiu, ele virou, ele escreve cordéis. Então, isso é muito bonito, muito orgânico. Para a trajetória dele, é o que eu acredito", completou o ator e diretor.

A criança como essência

No entanto, voltando ao tema do palhaço, tanto Chicó quanto João Grilo envelheceram, amadureceram, mas a essência, a base é a mesma, é a criança. São seres puros em suas malandragens, sobreviventes que riem na cara da desgraça e da precariedade, como milhões de brasileiros, mas lutam dia após dia contra injustiças atávicas ao País que bajula coronéis, poderosos e, hoje, vendedores de narrativas e de eletrodomésticos e produtos afins. Talvez por isso, por essa amplitude que vai da travessura infantil à estratégia de sobrevivência (aí entra a referência a "Servidor de Dois Patrões").

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"São palhaços, são dois seres muito puros. E acho que é por isso que conecta com tanta gente. Com criança, principalmente, que adora ver o filme, imitar e dublar a gente. E eles fazem no almoço de domingo com a família. Então, o jeito que fui fazer o Chico' foi com o mesmo prazer lúdico e simples de uma criança que vai brincar de ser João Grilo", completou a dupla, que também se reencontra com o projeto. Salvo algumas participações em projetos em que não contracenavam muito, " O Auto 2" é onde os atores se encontram de fato, em cena e fora dela.

A essência do brasileiro que Suassuna captou de forma genial está em cada cena em que Chicó e João Grilo se encontram. " Para manter um povo trabalhando em situação de quase escravo, pra você poder pagar muito mal ao povo durante muito tempo, tem de infantilizar esse povo. Senão, você não consegue o domínio. A gente ainda sente isso no Brasil. A maioria de nós ainda ganha a vida uma vez por dia. A cada dia que acorda, ganha a vida direta. Isso faz você infantil. Isso faz você refém, né? É a identificação imediata. E é o palhaço sempre vai ser uma criança com defeitos. É uma criança não só no seu lado fofo, encantador, mas é uma criança com defeitos", ponderou Matheus.

"Um é mentiroso, pouco sensual, de uma outra moral ou outra é amoral. Entendeu? O outro não respeita padre, não respeita freira não respeita patrão. E o palhaço tem que ser infantil e mostrar um defeito para que possa fazer a catarse. Todo mundo se identifica e também se refugia. Palhaço então... é tão escandalosamente encantador e é tão defeituoso", completou.

Taís Araújo interpreta Nossa Senhora em "O Auto da Compadecida 2"
Taís Araújo interpreta Nossa Senhora em "O Auto da Compadecida 2" Imagem: Laura Campanella

A humanidade cativante de Chicó e João Grilo dá o grão do real a um. aspecto que, tanto na literatura quanto no cinema, poderia ficar em segundo plano. E nesta nova versão os coadjuvantes também trazer nuances. Rosinha (Cavendish), por exemplo, ainda que, como diz a atriz, está longe de seu grande amor por muito tempo (ela também sumiu depois do final do primeiro filme), é uma mulher independente, que se garante e não entra em competição com outra mulher por bobagem. É a cara da mulher contemporânea, sem forçar a barra.

Já Taís Araújo é, como Nossa Senhora, uma das faces de Maria. A transição de mestra Fernanda Montenegro para Taís é bem resolvida e natural na trama, mais uma vez provando que é possível atualizar um clássico, mesmo com nostalgia, mas sem perder o olhar para o futuro.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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