Salles: Globo de Ouro confirma 'talento de Fernanda e do cinema brasileiro'
Em um ano atipicamente muito concorrido, "Ainda Estou Aqui" (AEA) encara hoje, com a entrega do Globo de Ouro, a primeira grande premiação da temporada, que culmina com o Oscar em 2 de março.
Ao lado do cineasta Walter Salles, estarão em Los Angeles hoje Fernanda Torres, indicada a melhor atriz em drama, Selton Mello, os produtores Maria Carlota Bruno e Rodrigo Teixeira e, claro, o Brasil todo torcendo "de casa".
Desde setembro de 2024, quando foi aclamado por público, crítica e recebeu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, o filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva já levou outros prêmios, indicações e foi visto por mais de três milhões de brasileiros no cinema.
Recordista de indicações do Brasil ao Globo de Ouro, Salles já concorreu com "Central do Brasil" (1999), "Abril Despedaçado" (2002), "Diários de Motocicleta" (2005).
Agora, com "Ainda Estou Aqui", Salles começa a reta final da campanha ao Oscar 2025, que divulga seus indicados no próximo 17 de janeiro. Também no dia 17, ocorre a estreia em circuito comercial de AEA nos Estados Unidos, e o público americano finalmente poderá conferir a história de Eunice Paiva e, como o europeu e o latino-americano, construir pontes entre sua história e a de seu país.
"Boa parte das projeções que teremos em Los Angeles e Nova York está ligada à estreia do filme nos cinemas por lá. E também iremos a festivais como Palm Springs, que fazem parte da promoção do filme nas diferentes frentes", contou ele em entrevista a Splash.
Para o cineasta, voltar ao Globo de Ouro 25 anos depois da primeira vez (quando venceu o prêmio com "Central do Brasil" e Fernanda Montenegro foi indicada a melhor atriz em drama) é a confirmação do que os brasileiros já sabem há tempos: "o talento imenso de Nanda [Fernanda Torres] e o reconhecimento da cinematografia brasileira".
No entanto, mais do que o reconhecimento internacional de Fernanda Torres e do cinema brasileiro, o reconhecimento do próprio público nacional com seu cinema e com a história do Brasil é o maior trunfo de "Ainda Estou Aqui".
Esse é o maior prêmio com que poderíamos sonhar. Esse reencontro gerou textos e artigos que ultrapassaram as páginas culturais, e também uma série de debates nas mídias sociais. Um filme só se completa no olhar do outro. Aqui também.
Walter Salles
A Splash, Salles, que hoje vai ver, com prêmio ou sem prêmio, a história de Eunice, do Brasil e do cinema brasileiro ressoar ainda mais, fala sobre a trajetória do filme.
Você é recordista de indicações do Brasil ao Globo de Ouro. Nessa temporada e campanha atual, o que mudou desde a primeira indicação? Era mais difícil, mais fácil ou apenas diferente a forma de lançar um filme internacionalmente e mobilizar corações e mentes em torno de uma história latino-americana?
Voltar ao Globo de Ouro 25 anos depois de "Central", com indicações para AEA e para Fernanda Torres, ecoa o que sentimos em 1999. De alguma maneira, é o reconhecimento do que nós sabíamos: o talento imenso de Nanda, e o reconhecimento da cinematografia brasileira.
Mas é importante perceber o que mudou de 1999 para cá. Na época de "Central", ninguém perguntava sobre "a campanha" de um filme. Essa prática foi instaurada por Harvey Weinstein [ex-produtor de filmes americano] justamente no final dos anos 1990. Nada mais seria como antes, infelizmente.
Existem filmes este ano com mais de 40 assessores de imprensa, algo impensável na época de "Central".
Esse ano também marca um ponto de inflexão, em que os streamings internacionais estão cada vez mais dominantes.
Latino-americana, ou brasileira, a história de Eunice Paiva, como observamos desde Veneza e viemos confirmando ao longo dos meses, dialoga, comove e mobiliza plateias do mundo todo. Foi uma surpresa para você? Em Veneza, era muito cedo para analisar a ressonância do filme, mas, hoje, depois de tantas sessões, debates, entrevistas, como você avalia esta carreira de "Ainda Estou Aqui"?
A justaposição entre o drama individual e o drama coletivo que está no coração do livro do Marcelo foi a porta de entrada para muitos espectadores, acredito. E os prêmios de público em países como França, Estados Unidos, Canadá e na Mostra de São Paulo foram um termômetro importante. Eles criaram as pré-condições para que AEA fosse visto onde importa, nas salas de cinema. Nesse sentido, os festivais foram nossos grandes aliados.
E ainda que essa seja uma história essencialmente brasileira, ela talvez esteja ressoando fora das nossas fronteiras por várias razões: a importância simbólica e política de Eunice Paiva, a excelência das atuações de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. E também pelo fato de que, em muitos países, a democracia vive um momento de inquietante fragilidade —o que torna o filme pertinente para outras culturas.
Para muitos, as ditaduras militares pareciam uma distopia distante, uma abstração. Hoje, não mais. Por muito pouco, o Brasil não caiu novamente nesse esgoto no final de 2022.
"Ainda Estou Aqui" foi visto por mais de três milhões de pessoas no Brasil. Como vê o diálogo do filme com o público "de casa" para quem, principalmente, o filme foi feito? Isso se deve, além de um belo filme, ao momento político e social pelo qual o Brasil passa? Há no nosso inconsciente (e talvez consciente) coletivo o desejo por histórias que ponham o dedo na ferida aberta que ainda é a Ditadura Militar no Brasil e que nos ajudem a lidar e tratar esse grande trauma?
O público de diversas gerações optou por vivenciar esse filme coletivamente, para se reencontrar com um reflexo da história do país. Esse é o maior prêmio com que poderíamos sonhar. Esse reencontro gerou textos e artigos que ultrapassaram as páginas culturais, e também uma série de debates nas mídias sociais. Um filme só se completa no olhar do outro. Aqui também.
As pessoas se apropriaram do filme, geraram seus próprios vídeos sobre pais e avós perseguidos ou desaparecidos durante a ditadura militar. A Lei da Anistia foi questionada, a UFRJ retirou o [título de] Doutor Honoris Causa do ditador Emílio Garrastazu Médici. Esse impacto onde mais nos importava tem sido bem emocionante, e acabou ressoando fora das nossas fronteiras.
Indicações a prêmios e prêmios importam ou não? Acredito que importa mais a trajetória e servem somente para que os filmes sejam mais conhecidos e, assim, mais vistos, e as histórias toquem mais pessoas. Concorda?
Sim, plenamente. Em um mundo com tamanha multiplicação de imagens, as indicações têm o mérito de ajudar os filmes independentes a existir. Nesse sentido, as indicações nos Golden Globes (Globo de Ouro), no Bafta ou no Goya são importantes. E aproveito para sublinhar que não somos favoritos a nenhum desses prêmios, em um ano atípico. Qualitativamente, o ano é bem mais competitivo do que no de "Central". E há um franco favorito, que deverá receber múltiplas indicações.
O que a indicação para um prêmio como o Globo de Ouro (para o filme e também para a Fernanda Torres) impacta para o mercado de cinema brasileiro? Em termos de público interessado em ver outras produções brasileiras, internacionalmente ou no próprio Brasil? Em termos de coproduções internacionais, em termos de o Brasil estar no jogo do cinema mundial?
Indicações são importantes para uma cinematografia, porque um filme não existe sozinho. Cada filme traz nele as sementes de outros filmes, as da cinematografia de um país e também as de um continente. Um exemplo: "Fico te devendo uma carta sobre o Brasil", o documentário de Carol Benjamim, foi um filme importante para a gente. Em entrevistas, muitos jornalistas de diferentes países fazem a ligação entre "Ainda Estou Aqui" e "A História Oficial", de Luis Puenzo, e "Argentina 1985", de Santiago Mitre. Considero isso um grande elogio, tenho uma profunda admiração por esses dois filmes, assim como por Puenzo e Santiago Mitre.
As indicações dão foco a uma cinematografia. A nossa precisa agora de continuidade, porque só com isso vamos ficar realmente fortes. Prêmios são uma consequência de uma política cinematográfica bem arquitetada.
No fim de tudo, o que te deu mais satisfação (ou senso de "era isso que eu sempre quis com este filme") com a carreira que "Ainda Estou Aqui" traçou até agora?
Sem pestanejar, a presença do público nos cinemas brasileiros, para vivenciar esse filme coletivamente. Para depois pensar sobre ele e gerar reflexão.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.