Flavia Guerra

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Opinião

'Babygirl' não é um thriller erótico e, sim, sobre liberdade feminina

Um thriller erótico! A definição (ou redução) do que é "Babygirl" mais atrapalha do que ajuda o filme dirigido pela holandesa Halina Reijn e estrelado por Nicole Kidman, que, pelo papel da executiva Romy, levou a Copa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza 2024. Ela também é uma das grandes cotadas para o Oscar 2025 e para o BAFTA 2025, mesmo tendo perdido o Globo de Ouro —para a brasileira Fernanda Torres.

Mas por que ler "Babygirl" apenas como um thriller erótico atrapalha o filme? Porque o erotismo está na superfície da trama, mas o filme é, na verdade, sobre o que Romy, que serve como uma metonímia para as mulheres contemporâneas, esconde, reprime, não conta nem para si mesma, mas que vem à tona quando um jovem estagiário esfrega na cara dela toda sua liberdade (que ela perdeu ao longo dos anos com tantas responsabilidades e jogos de aparência).

Na trama, Nicole vive uma executiva que, em 19 anos de relação, nunca teve um orgasmo e não consegue encontrar escuta atenta do companheiro para seus desejos nada politicamente corretos. Ela, então, encontra na figura de Samuel (Harris Dickinson, de "Triângulo da Tristeza" ), um jovem estagiário, o companheiro perfeito para, finalmente, ter prazer.

"Babygirl" é irregular, tem questões de roteiro e resolução da trama a serem apontadas, tem questões de direção que podem ser discutidas, mas é também deliciosamente irônico com os thrillers eróticos, principalmente os dos anos 1980 e 1990. Em geral, nessas tramas, homens maduros, executivos, bem sucedidos, pais de família, sedutores, entre outros perfis, têm um caso com uma mulher mais jovem, em um deslize, e a moça acaba se revelando ou uma presa frágil fácil de ser manipulada ou predadora, uma louca, desequilibrada, apaixonada, obcecada que vai colocar a família do amante em risco e, literalmente, cozinhar o coelho dele (lembram de "Atração Fatal", de 1987?).

Glenn Close em cena de "Atração Fatal"
Glenn Close em cena de "Atração Fatal" Imagem: Divulgação/IMDb

Glen Close, que até hoje é identificada como Alex, a louca que cozinhou o coelho da família do "pobre" executivo Dan Gallagher, vivido por Michael Douglas, chegou a apontar a questão da perspectiva masculina (ou o chamado "male gaze", como se define nos estudos de cinema) que thrillers eróticos e, principalmente, "Atração Fatal" trazem.

É impossível assistir a "Babygirl" sem ter em perspectiva filmes como esse e como "Instinto Selvagem" (1992) de Paul Verhoeven , mestre do suspense erótico, autor de outros filmes que são referência do gênero como "Elle" (2016) e "Benedetta" (2021) — mais um em que a mulher maluca e hipersexualizada colocava tudo em perigo. A cruzada de pernas de Sharon Stone entrou para a história e, mais uma vez, reforçou a ideia do sexo e do pecado e da punição que tem de vir para as bruxas contemporâneas.

Há também em perspectiva outros dramas clássicos, como "9 1/2 Semanas de Amor", de 1986, e thrillers eróticos contemporâneos, como o insosso "50 Tons de Cinza" e o sofrível "365 Dias", em que a figura feminina já está num outro oposto, a da garota deslumbrada pelo homem poderoso e rico que a seduz e manipula, mas também a "ajuda" a se encontrar e a se liberar.

Obviamente que a sexualidade é o encontro entre duas pessoas e que uma pode ser fator decisivo na liberação e nas descobertas que a outra faz sobre seu próprio desejo. No entanto, a figura do "salvador" erótico é infantilizadora e reducionista.

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E "Babygirl" não é nem uma coisa e nem outra. Romy/ Nicole Kikdman não é nem a maluca que enlouquece e faz da vida do rapaz com quem se envolve um inferno. Não é deslumbrada. Nem é a salvadora dele. Ela é apenas uma mulher, uma executiva, bem sucedida que, para manter seu trabalho, poder, status e família, suprimiu seus desejos e está desesperada por sentir algo, mesmo que este algo seja dor, medo e desejo.

Ela tem uma família linda, um marido ótimo e atencioso, mas com quem não se realiza sexualmente. E a escolha de Antonio Banderas, sex symbol eterno, não foi por acaso. Halina queria justamente que a falta de prazer de Romy não fosse tão pouco "culpa" de um marido tóxico, ainda que a falta de atenção ou os tabus que ele mesmo tem diante de uma mulher que pode se tornar uma loba (ou uma "bitch") na cama sejam um grande motivo do grande "gap do orgasmo" entre eles.

Aliás, O "gap do orgasmo", como disse a diretora Halina, existe. "Homens, anotem isso!", disse ela diante de uma plateia de jornalistas no Festival de Veneza, provocando risos nervosos. E quem é que preenche este "gap" ? A relação cheia de perigo, jogos de poder, submissão e um tiquinho ínfimo de sadomasoquismo que Romy desenvolve com Samuel.

Quem vir "Babygirl" esperando só mais um thriller erótico para chocar ou apenas instigar os instintos, obviamente, vai se decepcionar. O filme não é sobre isso, apesar de também o ser. "É sobre seus pensamentos íntimos, sobre segredos, sobre casamento, sobre verdade, poder, consentimento. A linguagem do sexo é tão complicada, é difícil de se responder sobre sexo porque essa é a história de uma mulher, e espero que seja muito libertadora", definiu Nicole Kidman em Veneza.

Sobre o desafio de fazer "Babygirl", a atriz comentou que se sentiu vulnerável, mas que é exatamente esta humanidade e naturalidade que ela quer encarar em seus trabalhos. "Me deixa exposta, vulnerável, e com medo de todas essas coisas quando é entregue ao mundo, mas fazê-lo com pessoas como Halina, Banderas, Dickinson, foi delicado e intimista. A gora a gente está um pouco nervoso, minhas mãos estão tremendo, mas, ao mesmo tempo, estamos muito orgulhosos de ainda fazer parte de um festival como esse, que tem o cinema como prioridade, com filmes que ainda são feitos e, particularmente dirigidos por por uma mulher", declarou Nicole, que estrelou em1999, ao lado do então marido Tom Cruise, outro longa que é referência em cinema e jogos de poder e erotismo: "De Olhos Bem Fechados", de Stanley Kubrick.

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Harris Dickinson e Nicole Kidman posam com a diretora Halina Reijn (ao centro) para divulgar o filme 'Babygirl' no Festival de Veneza
Harris Dickinson e Nicole Kidman posam com a diretora Halina Reijn (ao centro) para divulgar o filme 'Babygirl' no Festival de Veneza Imagem: Divulgação

Halina, que já trabalhou com Paul Verhoeven, muito espertamente se apropriou dos códigos do gênero suspense / thriller erótico e o subverte. A cineasta se apropria dos clichés do "male gaze" para criar cenas que, protagonizadas por uma mulher madura, poderosa e linda, causam constrangimento, incômodo, mas também desejo, curiosidade e até um senso de vingança e revanche. Afinal, quantas vezes já vimos em outros "thriller eróticos", quando a paixão casual fica séria e a amante começa a invadir a vida da família do amante, uma cena em que ele diz que é preciso acabar com tudo, pois sua família é sua prioridade?

Novos pôsteres de "Nínfomaníaca" mostram atores no momento do orgasmo
Novos pôsteres de "Nínfomaníaca" mostram atores no momento do orgasmo Imagem: Divulgação

Quantas vezes já vimos a mulher ser punida por perseguir seus desejos e terminar crucificada, presa, difamada, sozinha, louca por ousar se aproximar de seus desejos nada limpinhos? Em "Ninfomaníaca", de Lars Von Trier, Joe (Charlotte Gainsbourg) percorre uma via crúcis doentia em busca de seu prazer. "Eu sempre quis mais da vida", diz ela no final de seu périplo, em que foi julgada e punida de várias formas por querer esse "mais", por não ser uma mãe e esposa exemplar, por buscar algo impalpável que, a priori, era o desejo sexual realizado, mas que, como a personagem também afirma, não era muito mais libertino que a vida sexual de qualquer homem padrão.

Em suas entrelinhas, "Babygirl" propõe um novo jogo em que referencia mas ironia filmes que ajudaram a reforçar em imagens o inconsciente coletivo que naturaliza a exploração do corpo da mulher em takes que a desumanizam quando compartimentam pernas, nádegas, seios. Sem contar cenas de sexo em que o homem atinge o orgasmos em segundos e a mulher está sempre extasiada somente de estar a seu lado. Só a presença do amado basta.

Mas para Romy, não basta. E Samuel entende isso. Desde o primeiro olhar, sabe que, mesmo jovem (ou talvez por justamente o ser), pode não dominar, mas estabelecer um contrato com Romy em que ela se submete até onde quiser e como quiser. É antológico o diálogo entre ele e Jacob (Banderas), em que o marido está tão datado em uma ideia de desejo feminino sem nuances e óbvio enquanto o jovem já superou, para seu bem também, estereótipos de gênero e sabe que o jogo erótico é também sobre poder compartilhado.

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Pois bem. Em "Babygirl", há cenas assim só que no espelho, em um "cautionary tale" invertido, em que o grande perigo e a moral da história versa sobre, finalmente, o poder feminino ouvir seus instintos e, ao mesmo tempo, continuar no jogo social. Detalhe importante também são as personagens femininas coadjuvantes. Nem as filhas de Romy, adolescentes, julgam a mãe ao saberem de seu romance e sua angústia, e nem a funcionária - assistente a expõe em praça pública na empresa. Essa sonha com uma promoção mais do que merecida e sempre adiada e usa a informação para conseguir, muito justamente, o que quer. Ainda assim, o tom não é novelesco e "vou me vingar e acabar com sua vida", mas sim de "novos tempos, novas regras do jogo". Há também um conflito de gerações interessante e oportuno tanto na dinâmica de Romy e Samuel quanto dela com as jovens. E isso é muito mais interessante que o erotismo.

Ainda assim, há cenas picantes e íntimas que nitidamente foram escritas e filmadas por uma mulher. Detalhes tão imensos que podem causar certo desconforto, mas que se forem bem absorvidos, principalmente pelo público masculino, podem render muito debate em casa. Especial atenção para a sequência embalada por "Father Figure" e pela forma como Samuel, sem dizer nada, acolhe Romy depois de um acesso de choro depois do orgasmo.

Nicole Kidman e Harris Dickinson em cena de 'Babygirl', que inverte os padrões de gênero e clichês dos suspenses eróticos
Nicole Kidman e Harris Dickinson em cena de 'Babygirl', que inverte os padrões de gênero e clichês dos suspenses eróticos Imagem: Divulgação

"Babygirl" poderia ser mais sofisticado? Obviamente. Em seu terceiro ato, especificamente, há um tom de conciliação e até didatismo que poderiam ser facilmente dispensados. Mas subverte também os clichês ao ser uma fábula, ou o "cautionary tale" que não pune moralmente a "pecadora".

"Todos nós, homens, mulheres, girafas, todos os seres, temos diferentes lados, temos feras dentro de nós. Para as mulheres, a gente não teve ainda muito espaço para explorar nosso comportamento. Não só sobre o quanto nós somos fortes, mas também o quanto somos fracas também. Eu fui criada por pais que não acreditam que somos bons ou maus, mas sim um pouco das duas coisas. E a gente precisa continuar jogando luz sobre isso porque quanto mais a gente reprime isso mais perigoso se torna", comentou a diretora quando questionada sobre porque de não punir Romy no final do filme, como em uma trama simplista dos anos 80 e 90 (ecos de "Atração Fatal" e Glenn Close não são mera coincidência).

"Por isso que eu não quero punir nenhum de meus personagens, mas sim que eles apenas sejam eles mesmos, de forma que a gente realmente se conecte com eles e nos sintamos menos sozinhos", concluiu a diretora.

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Imperfeito e complexo, como outro filme incômodo da temporada, "A Substância", um " filme assunto" que dispara inúmeros gatilhos que vão render muitos debates. Só por isso, a ida ao cinema já vale cada minuto.

Opinião

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