Flavia Guerra

Flavia Guerra

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Para Jamie Foxx, negros na produção protegem narrativa negra: 'Emocionante'

Dividido em duas partes, "Artistas Negros Conquistam Hollywood" tem um nome original em inglês que pode ser hermético para quem não trabalha no audiovisual: "Number One on the Call Sheet". Por "call sheet", entenda-se a "Ordem do Dia", a ficha técnica que o diretor assistente de um filme ou série entrega à equipe com todas as informações das filmagens do dia seguinte: a locação, os objetos de cena, os nomes da equipe (diretor, diretor de fotografia etc), quantos figurantes estarão nas cenas e, claro, o elenco principal.

Ser o "número um" desta chamada significa ser o grande astro ou estrela, a figura mais importante do projeto. Obviamente, para se tornar o "number one on the call sheet" é preciso percorrer, em geral, um longo caminho. Em um mundo em que o racismo estrutural infelizmente ainda é presente, para artistas negros e negras esse caminho é mais árduo, mas estar no topo da lista é também mais simbólico e exemplo para gerações de hoje e do futuro.

É o caminho traçado por nomes como Halle Berry, a única atriz negra até hoje a conquistar um Oscar de melhor atriz, Sidney Poitier, Will Smith, Viola Davis, entre tantos outros, que o documentário "Artistas Negros Conquistam Hollywood" investiga. Em cartaz na AppleTV+, o documentário é dirigido por Reginald Hudlin e Shola Lynch.

Trocando em miúdos, "Artistas Negros Conquistam Hollywood" trata de um tema que aparentemente diz respeito à indústria de cinema norte-americana, mas que é universal: o quanto talentos negros têm de ser estratégicos, inteligentes e estar sempre atentos no combate diário ao racismo estrutural.

Dividida em "Homens Negros Conquistam Hollywood" e "Mulheres Negras Conquistam Hollywood, a produção tem acesso inédito e entrevistas honestas com nomes que mudaram a história não só do entretenimento em Hollywood, mas também ecoaram no mundo.

Quando figuras como Dwayne Johnson, conhecido como "The Rock", contam que uma coisa é ser recebido de braços abertos por Silvester Stallone e Arnold Schwarzenegger, e outra muito mais potente é ser recebido por Jamie Foxx (que já estava no mercado quando The Rock começou), é sobre esses laços entre quem sabe que é preciso, usando uma expressão citada na série, "chutar as portas" para abrir seu caminho em uma indústria altamente competitiva.

Halle Berry, a única artista negra a conquistar um Oscar de Melhor Atriz, em cena de "Artistas Negros Conquistam Hollywood"
Halle Berry, a única artista negra a conquistar um Oscar de Melhor Atriz, em cena de "Artistas Negros Conquistam Hollywood" Imagem: Divulgação / AppleTV+

Halle Berry, que conquistou um Oscar de melhor atriz em 2002 por "A Última Ceia", tem sido destaque na mídia por sua declaração: "Atuar realmente não foi algo que eu achei que ia fazer porque quando eu era criança não havia nenhuma atriz negra que me representasse, em quem eu poderia me mirar. Elas eram muito poucas e distantes entre si."

Continua após a publicidade

A atriz vê com olhos críticos o fato de que, em 97 edições do prêmio, ela seja a única negra a levar a estatueta da categoria. "O sistema realmente não foi feito para nós. Então, precisamos parar de cobiçar algo que não é para nós. Porque, no fim das contas, o que importa é como tocamos a vida das pessoas e, em sua essência, é para isso que a arte existe", comentou Halle, que se inspirou em nomes como Carmen Jones, Dorothy Dandridge, Diana Ross, entre outras.

A cineasta Shola Lynch  dirige a atriz Viola Davis em "Artistas Negros Conquistam Hollywood", no AppleTV+
A cineasta Shola Lynch dirige a atriz Viola Davis em "Artistas Negros Conquistam Hollywood", no AppleTV+ Imagem: Divulgação/ AppleTV+

A este cenário, Shola acrescenta a camada do machismo estrutural (e infelizmente universal): "Especialmente, acho que isso impacta bastante a história das mulheres também. Somos parte de uma diáspora. Existem pessoas negras no mundo inteiro, que têm tantos tons diferentes e lindos. E tem havido uma história de subvalorização da nossa beleza, mas também, da nossa capacidade. E a história das mulheres é sobre dizer f* isso."

"Estou achando meu caminho. Toda mulher diz isso, de um jeito ou de outro. Não importa se você tem a pele clara ou a pele escura, alguém está usando algo contra você para te negar uma oportunidade, para dizer que você não é qualificado. E todas essas mulheres falaram: 'Não'. E elas são as melhores", acrescentou a cineasta em entrevista a esta coluna.

Para Shola, assumir o protagonismo é também assumir seus próprios projetos. "O que eu quero dizer para as mulheres no mundo inteiro, e especialmente para as mulheres negras, é que nós devemos ser número um nas nossas próprias call sheets. E essas são as histórias que nos inspiram a fazer isso, sejamos atrizes ou não."

Ao trazer a história de estrelas como Halle Berry, Viola Davis, Whoopi Goldberg, Cynthia Erivo, Ruth Negga, Octavia Spencer, Tessa Thompson, entre outras, Shola dá a dimensão do que as atrizes negras encaram também como mulheres em uma indústria que, por muito tempo, colocou as atrizes, independentemente de etnia e raça, em posição de coadjuvante e, quando não, objeto.

Continua após a publicidade
Reginald Hudlin, diretor do episódio ""Homens Negros Conquistam Hollywood" do documentário "Artistas Negros Conquistam Hollywood", no AppleTV+
Reginald Hudlin, diretor do episódio ""Homens Negros Conquistam Hollywood" do documentário "Artistas Negros Conquistam Hollywood", no AppleTV+ Imagem: Divulgação/ AppleTV+

Se, aparentemente, a trajetória desses vários artistas diz respeito só ao mercado norte-americano, é Reginald, cineasta parceiro de nomes como Spike Lee em "Faça a Coisa Certa", quem contextualiza.

"Para começar, muitos americanos negros sentem muita afinidade com o Brasil pela grande população negra de lá. Nós sabemos que a Bahia tem alguns. Como dizem, é o país mais nigeriano no Ocidente. O filme "Orfeu do Carnaval", para mim, é um dos melhores já feitos. Nós sentimos grande afinidade com eles. Além disso, cresci estudando capoeira. Nos conectamos profundamente."

Reginald observa que ainda que a raça seja definida de uma forma diferente nos Estados Unidos e no Brasil, a conexão é direta. "Muitos negros americanos dizem: 'Ei, somos todos pretos'. Mas eles [os brasileiros] não. [Dizem que], na verdade, temos uma subcategoria. Essa é uma das vantagens, estranhamente, da escravidão americana. Havia a 'regra de uma gota', que dizia: 'Vocês são todos pretos'. Apenas uma gota de sangue", continuou.

"Mas o ponto é: fazemos filmes globais para públicos globais. E olhamos para suas estrelas. Sônia Braga, tantas atrizes e atores incríveis, e eles são estrelas globais. Eu acho que a mensagem é: 'Seja você mesmo'. Não deixe ninguém te dizer: 'você não é loira o suficiente', 'você não tem olhos azuis o suficiente', 'você não é pálido o suficiente'. Não. Quem você é, o que você é, é lindo. Abrace isso. Celebre isso. Porque nós celebramos você", completou o diretor.

Jamie Foxx em cena de "Artisas Negros Conquistam Hollywood", documentário em duas partes que ele também produz
Jamie Foxx em cena de "Artisas Negros Conquistam Hollywood", documentário em duas partes que ele também produz Imagem: Divulgação / AppleTV+

Essa valorização ganha força com produtores como Jamie Foxx e Zatari Turner à frente de um projeto que não é apenas celebratório, mas histórico, pois os avanços dependem também de se documentar o caminho percorrido em uma luta não só por estrelato, mas por legitimidade e cidadania. O que se vê na tela reverbera, obviamente, na sociedade, e vice-versa.

Continua após a publicidade

"Meu produtor parceiro, Zatari Turner, me perguntou há alguns anos por que eu não estava produzindo. E eu nunca nem pensei nisso. Ele disse que é assim que nós protegemos nossas narrativas. E, ao mesmo tempo, entretemos. Então eu tenho que dar o crédito a ele, porque, sendo honesto, existem ideias, de filmes e TV, que eu deixei em mesas de jantar no mundo inteiro, porque eu não entendia. Mas ter um ótimo produtor parceiro e ter a visão de ver isso, ver que 'número um numa call sheet' é muito importante... É uma sensação boa estar nessa posição. Produzir é algo novo para mim, mas é emocionante", afirma Foxx em entrevista ao Splash.

"Artistas Negros Conquistam Hollywood" tem um formato clássico, de entrevistas, imagens de cobertura e direção que não aparece mais do que o assunto do qual trata. Juntos, astros e estrelas abrem o coração e dividem seus desafios, conquistas, estratégias e apontam passos que as gerações futuras podem dar para ocupar cada vez mais o protagonismo no cinema e na cultura não só norte-americana, mas também internacional.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.