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Aposta da Netflix em produções brasileiras é sincera ou marketing?
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Resumo da notícia
- Enquanto estreaming cresce, TV e cinema encolhem; repor os impostos e benefícios gerados pela mídia tradicional se tornou um desafio
- Aumentar a tributação do streaming tem sido uma medida recorrente no mundo todo, mas quem paga a conta é o usuário
- Outro problema é que com o encolhimento da TV e do cinema, produtores de conteúdo nacional tem menos opções e recursos
- Brasil não tem política de cotas para o streaming, a Europa tem implementado rígidas medidas para defender indústria local
- Modelo de produção e algoritmos das plataformas de streaming é criticado por especialistas
- Ao abracar a produção nacional Netflix pode sair com saldo positivo com o público e os políticos que planejam uma nova legislação específica
O que fazer quando um setor como o streaming cresce tanto que começa a matar os concorrentes?
Os liberais defendem deixar o mercado seguir seu curso. Ou seja, assim como as velas desapareceram da iluminação pública e os carros ocuparam o espaço dos cavalos nas ruas, o streaming gradualmente empurrará a TV tradicional e o cinema para espaços de nicho.
Mas se as TVs e cinemas "sumirem", quem pagará os bilhões em impostos que eles geram para os governos? E mais, o que acontecerá com a produção audiovisual nacional que é altamente dependente dessas plataformas tradicionais?
Não existe resposta fácil
Se o streaming está "roubando" o lugar da TV e do cinema, o natural é que ele passe a pagar a conta. Ao menos é assim que boa parte dos governos pelo mundo têm avaliado.
"Existe uma discussão tributária local não somente sobre o streaming, mas com relação ao digital", diz Danielle Serafino, advogada tributarista e sócia do escritório Opice Blum. "O Brasil é favorável à tributação global e caminha para implementar essa mudança juntamente com a reforma tributária", acrescenta.
Nos Estados Unidos, municípios e estados têm entrado na justiça contra empresas de streaming para que elas paguem mais impostos. Grand Prairie, uma cidade no norte do Texas, está processando a Netflix, Disney+ e Hulu por usarem a infraestrutura da internet pública local para streaming sem pagar o que a cidade alega serem taxas de franquia. Dallas, Plano e Frisco anunciaram processos semelhantes.
Pandemia piorou receita de governos
As ações se devem a uma queda nas fontes de receita tributária com a pandemia. As taxas de franquia pagas às cidades por provedores de TV a cabo têm diminuído à medida que mais clientes aderem ao streaming.
Processos semelhantes ocorrem no Missouri, Nevada e Arkansas. No último caso, o estado quer receber 5% das receitas com assinantes da plataforma.
As empresas de streaming alegam que novos impostos vão aumentar a conta e ela será repassada aos assinantes. Por hora a justiça tem dado vitória às empresas de streaming, mas isso deve mudar com a chegada de novas leis.
No Brasil, estados e municípios em guerra
Por aqui a batalha tem duas frentes. Os estados querem cobrar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos serviços streaming. Os municípios querem tributar usando o Imposto Sobre Serviços (ISS).
Impostos dão margem a interpretações de empresas e governos, particularmente no Brasil. A questão seria taxar o streaming como um canal de TV ou como uma locadora em loja física. Seja como for, as empresas não querem pagar os dois impostos, e preferencialmente, preferem pagar o menor deles.
"O STF já deu decisão a favor do ISS no caso do streaming. Para os tributaristas, não deveria existir dúvida. O imposto deveria ser recolhido no local do prestador de serviço, ou seja, no município", diz Danielle.
Mesmo assim, alguns estados e municípios seguiram cobrando e multando as empresas.
Danielle avalia que existe grande chance do Brasil criar novos tributos digitais e unificar a cobrança, a exemplo da nova tributação de software aprovada este ano no país. Ela também vê grandes possibilidades de surgir um Condecine para o streaming.
Condecine estimula produção nacional
A Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, o Condecine, dá duas alternativas a empresas estrangeiras que distribuem conteúdo no país.
Na primeira, pode ser paga uma alíquota de 11% sobre a remessa ao exterior de importâncias relativas a rendimentos decorrentes da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas, ou por sua aquisição ou importação.
Na segunda opção, a empresa fica isenta do pagamento da Condecine se optar por aplicar o valor correspondente a 3% da remessa em projetos de produção de conteúdo audiovisual independente, aprovados pela Ancine.
A maioria das empresas opta pela isenção e ficam obrigadas a investir 3% na produção brasileira, o que estimula a indústria local. A cota de 3% no Brasil é baixa em comparação à Europa. A chamada cota de tela pode chegar a 50% por lá.
Maior fundo audiovisual do país
O que o Condecine arrecada compõe o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é revertido diretamente para o fomento do setor. O FSA é o maior mecanismo de incentivo ao audiovisual brasileiro. Porém, o Condecine não se aplica ao streaming.
O deputado André Figueiredo (PDT-CE) apresentou em novembro um novo parecer sobre o PL 8889/2017, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que propõe uma ampla regulação dos serviços de streaming. O parecer de Figueiredo determina que as plataformas de streaming invistam 10% do faturamento em conteúdo nacional,
Defesa da Identidade Nacional
Regiões com indústrias cinematográficas relevantes têm atuado para implementar cotas de streaming. Europa e Índia são exemplos. Além da defesa da identidade nacional, esses países argumentam que as medidas estimulam a economia e a indústria local.
Entre vários atos legislativos da União Europeia destinados a regular as plataformas de streaming, o mais significativo é a Diretiva de Serviços de Comunicação Social Audiovisual, que se encontra em várias fases de implementação em toda a Europa.
A diretiva envolve obrigações de investimento na maioria dos países e, em alguns, estabelecerá termos de troca para os serviços de streaming quando eles se relacionarem com produtores europeus, que estão felizes com as oportunidades de cooperação, mas rejeitam o modelo de contrato por obra como usado pela Netflix.
Lupin rouba a cena
A França é um dos mais rígidos proponentes da cota. O país exigirá 60% de conteúdo europeu. Além disso, o governo francês recentemente emitiu um decreto que estabelece uma obrigação de investimento entre 20% e 25% da receita das operações francesas de serviços de streaming.
Quem foi ao Festival de Cannes com a expectativa de ver algum filme da Netflix saiu decepcionado. O festival francês impõe uma regra de que todos os filmes em competição devem ser lançados teatralmente na França.
A indústria de cinema na França é poderosa e impõe uma rígida janela de lançamento de 36 meses. Como a Netflix lança suas produções simultaneamente na TV e no cinema, tem dificuldades de entrar nas salas do país.
A maldição do algoritmo
A cineasta Marina Rodrigues diz que a economia criativa brasileira cresceu muito no país graças à cota de 3%, mas vê risco de retrocesso. "Existe uma relação tóxica entre as plataformas e os produtores. Se você não aceita o contrato da Netflix não tem onde lançar seu filme. O problema é que no contrato eles exigem os direitos da obra".
Se alguma obra se torna um grande sucesso, apenas a plataforma ganha. Outra questão é que os cineastas acabam apenas seguindo as fórmulas da plataforma, o que diminui a diversidade do conteúdo. Com menos cinemas e TVs a cabo, quem produz tem de ceder ao streaming por falta de alternativa.
Marina vê um outro problema. "Plataformas de streaming são algoritmos. Não adianta produzir conteúdo e deixar lá dentro se ele não for promovido e não tiver destaque. Boa parte do conteúdo nacional fica escondido", conclui.
Netflix abraçou o cinema nacional?
Dias atrás a Netflix realizou um grande evento online para enaltecer o cinema brasileiro. Artistas e produtores locais, além de representantes da empresa, falaram dos planos de lançamento de produções nacionais na plataforma.
O movimento é positivo e pode ajudar o setor no Brasil. Sucessos como Lupin e Round 6 mostram que o público da Netflix está cada vez mais aberto a produções regionais.
Questionada, a Netflix respondeu por meio de sua comunicação: "Os governos decidem as regras tributárias e, em todos os países em que operamos, respeitamos essas regras. Em relação ao Brasil, continuamos abertos ao diálogo para a construção da melhor solução para o setor no país".
Mas como os desafios tributários e de regulação apontam, a Netflix possivelmente apenas esteja se adiantando à discussão e tentando controlar a narrativa. Se for vista como a empresa que abraçou o cinema brasileiro, melhor para sua imagem e maiores as chances de encontrar boa vontade entre os políticos na hora de determinar o valor da cota brasileira para o streaming e o tamanho da mordida do imposto.
Existe ainda a chance de surgir por aqui o próximo fenômeno global da Netflix e que será totalmente dela.
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