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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a Netflix perdeu a liderança e a era de ouro do streaming acabou

Colunista do UOL

14/08/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Disney surpreendeu ao anunciar essa semana que ultrapassou a Netflix em número de assinantes
  • Franquias de grande sucesso da Disney provaram ser mais efetivas do que o volume de produções da Netflix
  • Apesar da liderança, Disney prevê dias difíceis para o streaming e reduz investimento em conteúdo e projeta crescer menos

Nesta semana a Disney anunciou que superou a Netflix em número de assinantes no mundo. A notícia surpreendeu. A Disney entrou para valer no streaming há pouco mais de três anos, quando lançou o Disney+. A Netflix lançou sua plataforma de streaming há 15 anos e até o ano passado era líder absoluta do setor.

No segundo trimestre deste ano, o Disney+ ganhou 14,4 milhões de novos assinantes, elevando seu total global para 152,1 milhões de assinantes. Assim, a base total de assinantes da Disney chegou a 221,1 milhões de clientes em todas as suas plataformas de streaming, incluindo ESPN + e Hulu. A Netflix informou no mês passado que tinha 220,67 milhões de assinantes.

Uma série de erros ajudam a explicar a derrocada da Netflix, do aumento da concorrência de novas plataformas de streaming no mercado, até decisões equivocadas da dona do Tudum, como abrir mão da transmissão de esportes ao vivo, realizar expressivos aumentos de preços nas assinaturas e crescer o volume produção perdendo qualidade artística dos conteúdos.

Mas provavelmente, a explicação para a vantagem da Disney é que a gigante tradicional entendeu antes da Netflix que a vitória seria de quem tivesse o melhor conteúdo.

Disney+ apostou na qualidade, não no volume

Sim, a Netflix saiu na frente no streaming. Mas ela cresceu rapidamente apenas enquanto usava as produções dos grandes estúdios e TVs. Quando os tradicionais produtores de conteúdo começaram a não renovar os contratos de licenciamento para investir em suas próprias plataformas de streaming, a Netflix se viu forçada a fazer séries e filmes originais.

No começo isso não parecia ser um grande problema. House of Cards, primeira produção original da Netflix, lançada em 2013, foi um sucesso. A série era um produto de alta qualidade, com grandes estrelas, e abriu portas para um tipo de conteúdo autoral que os talentos não encontravam espaço para fazer na TV ou cinema.

O problema é que a Netflix precisava repor o que perdia em seu catálogo em um ritmo cada vez mais rápido. Assim, investiu bilhões de dólares em suas produções, priorizando o volume. A aposta era no crescimento baseado no aumento da dívida para ter mais volume de produções antes que outros concorrentes chegassem ao mercado. O problema é que criar grandes sucessos é difícil e leva tempo. A falácia de que dados poderiam resolver o problema também não ajudou.

Bob Iger, CEO da Disney, disse à Vanity Fair, em 2019, dois meses antes de lançar o Disney+. "O que a Netflix está fazendo é criar conteúdo para apoiar uma plataforma. Estamos criando conteúdo para contar ótimas histórias. É muito diferente", afirmou o executivo.

Agnes Chu, executiva do Disney+, afirmou pouco antes do lançamento da plataforma da Disney que a abordagem seria nostálgica, mas também muito cuidadosa. "Não estamos fazendo um grande volume de coisas apenas para fazê-las", disse ela. "Tudo o que fazemos, temos um foco muito claro de que precisa atender aos padrões estabelecidos pelos originais e, esperamos, levá-lo a outro nível no Disney+". O colega executivo Ricky Strauss também observou: "A Netflix existe há anos fazendo o que faz. Então, sim, não seríamos competitivos em quantidade."

Durante a pandemia, o plano da Netflix funcionou. O Disney+ também foi impulsionado pelo isolamento. O problema começou no final do ano passado, quando as pessoas voltaram à vida normal, ficando menos em casa, e as taxas de juros começaram a subir, encarecendo o valor da dívida das empresas de streaming. Isso fez os investidores passarem a cobrar lucros das empresas.

Darth Vader vence Stranger Things

Quando a Disney lançou seu streaming podia se dar ao luxo de adotar uma estratégia de qualidade pelo simples fato de ter largado décadas na frente. Além de ser dona do canal de TV ABC, e ter personagens reconhecidos mundialmente como o Mickey, a Disney começou uma série de compras para rejuvenescer suas propriedades enquanto a Netflix ainda enviava DVDs pelo correio.

Em 2006 a Disney comprou os estúdios Pixar, dono de franquias amadas como Toy Story e Procurando Nemo, por US$ 7,4 bilhões. Em 2009, veio a surpreendente compra da Marvel e seu estrelado esquadrão de heróis por US$ 4 bilhões. Em 2012, foi a vez das poderosas franquias da Lucasfilm, como Star Wars e Indiana Jones, irem para o controle da Disney por US$ 4,05 bilhões. A Netflix foi fundada em 1997, e em 2007 lançou seu serviço de streaming.

Os sucessivos recordes de bilheteria dos filmes da Pixar, Marvel e Lucasfilm tornaram a Disney de longe a mais lucrativa empresa de cinema. Mas o apelo das marcas não se limita às salas de cinema. Apenas 16 meses após seu lançamento, o Disney+ atingiu a marca de 100 milhões de assinantes. A Netflix levou uma década para alcançar esse número.

Stranger Things é a maior franquia da Netflix, mas até por ser bem mais jovem, é minúscula se comparada ao universo Marvel e Star Wars.

A Disney tem outra vantagem. Ao divulgar os resultados essa semana, a empresa reportou um salto de 26% na receita. As assinaturas de streaming ajudaram, mas os parques temáticos da empresa registraram recordes de faturamento. Diferentemente da Netflix, que vive de assinantes, o negócio mais rentável da Disney são seus parques, resorts e cruzeiros.

Parques da Disney são sonho de consumo

As vendas na divisão de parques, experiências e produtos - que inclui Disneyland, Walt Disney World e quatro resorts na Europa e Ásia - atingiram US$ 7,4 bilhões no trimestre, um recorde, e aumentaram 70% em relação a 2021.

A nova montanha-russa dos Guardiões da Galáxia, uma visita ao Darth Vader ou o momento inesquecível de uma foto ao lado Mickey faz os pais se separarem alegremente do dinheiro na carteira. Isso permite escala. Enquanto a Netflix prevê gastar US$ 17 bilhões em conteúdo este ano, a Disney projeta gastar US$ 30 bilhões apenas na produção de conteúdo em todas as suas propriedades.

Cerca de um terço desses US$ 30 bilhões são gastos pela Disney com licenciamentos esportivos. A ESPN, que até recentemente era alvo de estudos para ser vendida, agora se tornou uma das preciosidades da Disney. A empresa inclusive descartou os planos de venda. O streaming se parece muito mais com a TV tradicional do que muitos imaginavam, já que esportes também estão se tornando a grande atração das plataformas.

Compra da Fox mudou o jogo

A aquisição da Fox pela Disney em 2018 foi visionária. Além de franquias como Deadpool, Avatar, e Os Simpsons, a Disney levou o Hotstar. A plataforma de streaming da Fox era fortíssima na Ásia, em boa parte por ser dona dos direitos da Indian Premier League. O Disney+ tem 38% de seus assinantes na Índia e países do Sudeste Asiático. A região mais populosa do mundo é fanática por críquete e as transmissões dos jogos trouxeram milhares de assinantes para a plataforma.

Apesar dos altos investimentos, a Netflix não decola na região. A empresa teria 5 milhões de assinantes em comparação aos 36 milhões das plataformas da Disney.

As sucessivas aquisições da Disney e as diferentes estratégias de cada plataforma da empresa ajudam a explicar por que analisar seus números é complexo, principalmente em uma comparação direta com a Netflix. Inclusive, a Disney ter passado a Netflix é questionável.

1 + 1 = 3?

A contagem total da Disney soma três serviços do pacote da empresa: Disney+, ESPN+ e Hulu (do qual a Disney é dona de 67%) -, enquanto a Netflix é avaliada individualmente. Uma comparação melhor seria observar os assinantes de streaming não duplicados da Disney (ou seja, famílias), mas a empresa não divulga esse número.

Outro ponto importante é que o nos últimos meses o Hulu tem crescido mais rapidamente que o Disney+. A plataforma vai bem particularmente entre o público mais velho, que tende a se importar menos com Star Wars e os heróis da Marvel.

Se a Disney é a líder de assinantes ou não, talvez seja o menor dos problemas da empresa. Parte da explicação para o rápido crescimento da companhia foram seus preços baixos, principalmente na América Latina e Ásia.

A Disney prevê que o Disney+ dê lucro apenas no final de 2024. Mas os prejuízos da empresa com streaming estão crescendo. O prejuízo operacional para o segmento disparou para US$ 1,06 bilhão no trimestre, contra US$ 293 milhões no mesmo período do ano anterior. A Netflix registrou no mesmo período lucro líquido de US$ 1,44 bilhão.

Nos Estados Unidos, a Disney gerou apenas 39% da receita da Netflix por assinante no segundo trimestre (ARPU). Ou seja, a receita média por usuário da Disney é menos da metade da Netflix. No exterior a diferença é ainda maior: o Disney+ Hotstar teve um ARPU de US$ 1,20/mês no trimestre encerrado em 2 de julho, enquanto a Netflix teve um ARPU de US$ 8,83/mês para a região Ásia-Pacífico, aponta a Variety.

Disparada do preço dos planos

Para reverter a situação, a Disney anunciou que aumentará em 38% o valor da assinatura do Disney+ nos Estados Unidos. O preço do Disney+ sem anúncios aumentará de US$ 7,99 por mês para US$ 10,99 por mês, ou US$ 109,99 por ano. O novo serviço básico do Disney+ com anúncios, que será lançado em dezembro nos Estados Unidos, custará US$ 7,99 por mês. Também estão previstos aumentos para combos com Disney+, Hulu e ESPN+.

Além dos prejuízos crescentes, a Disney adiantou ter uma visão pessimista para o streaming nos próximos meses. Na quarta-feira, a empresa reduziu sua previsão de longo prazo para assinantes do Disney+, para 215 milhões a 245 milhões de assinantes. É uma queda de 15 milhões tanto no limite inferior quanto no limite superior da última previsão.

A Disney está reduzindo sua previsão para o Disney+ em parte por não renovar os direitos da Indian Premier League, mas também por acreditar que o aumento da inflação e a desaceleração da economia no mundo vai impactar o setor. A empresa reduziu em US$ 2 bilhões a previsão de investimento em conteúdo este ano, de US$ 32 bilhões para os US$ 30 bilhões divulgados semana passada.

Outra iniciativa para melhorar as contas será o lançamento da versão do Disney+ com publicidade. A Netflix também anunciou um plano mais barato com anúncios, enquanto a HBO Max já estuda um plano gratuito com propagandas.

A Disney está na frente da Netflix por enquanto. Mas se o streaming de fato for um jogo de qualidade de conteúdo e dinheiro no caixa para comprar e criar grandes franquias, o risco para a Disney é ser superada pelos gigantes de tecnologia.

Apple+, Google e Amazon são empresas maiores e mais ricas. E a exemplo da Disney, para as big techs o streaming é apenas um meio para venderem produtos de maior valor. Ainda teremos grandes produções, mas os cortes de custos já são uma realidade, assim como os aumentos nos preços das assinaturas. A era de ouro do streaming acabou.

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