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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a Globo erra com Cássia Kis e como a psicologia explica

Cássia Kis participa de manifestação antidemocrática no Rio de Janeiro                              - Reprodução/Twitter
Cássia Kis participa de manifestação antidemocrática no Rio de Janeiro Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

06/11/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Cássia Kis se tornou um problema para a Globo; emissora avalia denúncias contra a atriz e estuda como proceder no caso
  • Globo não quer tornar Cássia Kis uma mártir e tenta evitar maiores atritos com a autora Glória Perez
  • Polêmica acontece meses após Globo lançar um grande projeto de sustentabilidade e assumir compromisso com a ONU

Quando uma empresa começa o relacionamento com uma estrela, as expectativas são as melhores. Mas a crescente polarização política e o surgimento do gigantesco fórum popular das redes sociais têm criado um desafio cada vez maior para as grandes marcas que se associam a um famoso.

Veja o caso de Cássia Kis e da Globo. Após 40 anos de uma carreira bem-sucedida e sendo uma das atrizes mais celebradas de sua geração, Cássia jogou pela janela sua reputação para apoiar manifestações golpistas e propagar falas homofóbicas.

Em entrevista ao canal da jornalista Leda Nagle, Cássia alegou que casais homoafetivos são uma ameaça ao conceito familiar e que relações homossexuais são uma "destruição para a vida humana". Pouco depois, ela apareceu em uma manifestação antidemocrática rezando de joelhos.

Como disse o colunista do UOL Tales Faria, Cássia está exercendo seu direito de rasgar a própria biografia ao participar de manifestações golpistas e "apagar" sua vasta história como artista. Mas como fica a Globo neste caso? E, principalmente, como a empresa deveria reagir à postura controversa e cada vez mais errática de uma de suas estrelas "prata da casa"?

Não é uma decisão fácil. Tirar a atriz do ar pode ser visto como um gesto de censura da Globo a um artista. Por outro lado, deixá-la no ar pode mostrar complacência com o discurso antidemocrático e homofóbico.

Nessa semana, a Globo recebeu ao menos dez denúncias em sua área de compliance contra Cássia. Segundo o colunista Lucas Pasin, de Splash, os funcionários da emissora denunciaram que a atriz grita e destrata colegas, inclusive com comentários preconceituosos.

A direção da empresa tem avaliado o caso com atenção, mas dois fatores complicam uma decisão. A primeira é que por uma inacreditável coincidência a autora da novela, Gloria Perez, também é bolsonarista (embora muito menos radical). Então, não dá para a Globo simplesmente mandar que Glória reduza o papel de Cássia até chegar a um ponto em que dê para prescindir da atriz.

A segunda questão é que se cortar Cássia agora, no calor dos acontecimentos, poderia criar uma mártir. Na avaliação de funcionários da Globo, a decisão sobre a permanência ou não da atriz na empresa vai depender das denúncias que chegarem ao compliance da Globo e da gravidade delas.

Apenas se distanciar não funciona

Após o início da polêmica, a Globo emitiu nota afirmando ter "um firme compromisso com a diversidade e a inclusão e repudia qualquer forma de discriminação". Posteriormente, a empresa também negou que tenha vetado a participação de Cássia em programas da emissora, além de afirmar que não tem intenção de demitir a veterana, que está no ar na novela Travessia como Cidália.

O problema para a Globo é que ficar em cima do muro e tentar "se afastar" ou isolar o problema não vai resolver a questão. Na maioria das vezes, o comportamento de estrelas como Cássia acaba sendo estimulado pela postura dos empregadores que tentam evitar o embate para reduzir os "prejuízos". Cássia é uma figura pública, o que torna impossível ignorá-la ou tratá-la como se fosse um funcionário qualquer.

Ou seja, quando se trata de uma figura pública, não encerrar a relação de maneira explícita estimula o comportamento, criando uma espiral de problemas que aumentam o vexame da empresa até que ela se veja forçada a tomar uma providência.

Caso Kanye West e Adidas

Ye (como passou a se chamar o músico Kanye West) criou com a Adidas uma das mais bem-sucedidas parcerias comerciais do mundo. A Yeezy, marca do artista com a Adidas, representa mais de 40% dos lucros da gigante de artigos esportivos, ou US$ 1,8 bilhão em vendas anuais. Segundo a Adidas, a rescisão deve custar US$ 246 milhões em lucro apenas neste ano.

Mas o fim do relacionamento entre Ye e a Adidas começou anos atrás, à medida que o comportamento dela se tornava cada vez mais errático. Segundo a Bloomberg, em 2018, quando Ye deu uma declaração ao site TMZ afirmando que os negros na América fizeram a escolha de permanecer na escravidão por 400 anos, a marca alemã já sabia que tinha um problema nas mãos.

Em meio à polêmica, as ações da Adidas despencaram, os pedidos de boicote aos tênis da marca cresceram, mas o CEO Kasper Rorsted parecia fazer tudo o que podia para evitar abordar o assunto de maneira contundente nas entrevistas ao longo dos anos.

De lá para cá, as polêmicas e críticas cresceram e a Adidas ia levando como podia. Mas os comentários antissemitas de Ye em outubro foram a gota d'água para o fim do relacionamento lucrativo e tempestuoso.

A marca saiu bastante arranhada. Empresas como Gap (que tinha um contrato de dez anos com Ye), Balenciaga e Anna Wintour, editora de moda da Vogue, rapidamente romperam relações. Mas a Adidas apenas soltou um comunicado, em certo sentido semelhante ao da Globo com Cássia, dizendo que não compactuava com o comportamento de Ye.

Mas o público não aceitou. A Adidas passou a ser "cancelada" nas redes sociais e mídia. Se uma empresa não compactua com o comportamento de um colaborador que é uma figura pública proeminente, não deve ter esse funcionário em sua equipe. Até mesmo porque a tendência é de intensificação do discurso radical, seja ele qual for.

Ye e a Adidas romperam o relacionamento em uma ligação telefônica de dois minutos no final de outubro.

Kyrie Irving, estrela do Nets, e o antissemitismo

Outro exemplo das consequências da complacência é o caso de Kyrie Irving, astro da NBA, que suspenso pelo Brooklyn Nets, por um mínimo de cinco jogos sem pagamento, em resposta à recusa da estrela da NBA a rejeitar inequivocamente o antissemitismo.

Há uma semana, Irving postou um filme com comentários contra judeus em uma rede social e se recusou a pedir desculpas. Em uma entrevista coletiva, o atleta agravou a situação ao novamente se recusar a rejeitar o antissemitismo.

"Eu não vou desistir", disse Irving diante dos jornalistas. "Não tem nada a ver com dispensar qualquer outra raça ou grupo de pessoas. Estou orgulhoso de minha herança e do que passamos", disse ele, lamentando que o furor tenha "me colocado contra a comunidade judaica. Não é que eu não acredite no Holocausto. Eu nunca disse isso. O Holocausto em si é um evento que significa algo para um grande grupo de pessoas que sofreram algo que poderia ter sido evitado".

Após as falas de Irving, o Nets disse em comunicado que "tal falha ao não rejeitar o antissemitismo quando é dada uma oportunidade clara de fazê-lo é profundamente perturbadora, é contra os valores de nossa organização e constitui uma conduta prejudicial à equipe. Assim, somos da opinião de que ele não está apto para ser associado ao Brooklyn Nets".

O Nets disse que Irving permaneceria afastado sem pagamento - o contrato de Irving paga mais de US$ 36 milhões este ano - até que ele satisfaça "uma série de medidas corretivas objetivas que abordem o impacto prejudicial de sua conduta".

A decisão dos Nets de suspender Irving veio 24 horas depois que ambas as partes emitiram uma declaração conjunta com a Liga Antidifamação prometendo contribuir com US$ 1 milhão para organizações que trabalham para "erradicar o ódio e a intolerância". A ADL disse na quinta-feira que estava rejeitando os US$ 500.000 de Irving porque não podia "em sã consciência" aceitar seu dinheiro.

O Nets tentou contornar a situação da maneira que pode, mas no final cedeu para diminuir o estrago diante da recusa do astro a mudar seu discurso publicamente.

A Nike disse na sexta-feira que estava suspendendo seu acordo de patrocínio com o atleta imediatamente e não lançaria o tênis Kyrie 8, um de seus principais produtos. A Nike lançou o primeiro tênis com a assinatura de Irving em 2014. O Kyrie 8 estava programado para ser lançado ainda este mês.

Relatório de Sustentabilidade da Globo

A Globo tem intensificado seus esforços para se tornar uma referência mundial em ESG (Environmental, Social and Governance, em português, Ambiental, Social e Governança). Em julho a empresa lançou a Jornada ESG, seguindo as rígidas diretrizes da GRI (Global Reporting Iniciative). O material reúne as iniciativas de sustentabilidade da Globo, dos 26 canais de TV por assinatura, do Globoplay e de seus produtos digitais.

Em entrevista ao Notícias da TV em julho, Manuel Belmar, diretor-geral de Finanças da Globo, disse que existe uma questão econômica para que as empresas se tornarem mais sustentáveis. "O ESG tem um peso cada vez maior no mercado financeiro, estamos muito atentos a isso. Está cada vez mais claro que esses são temas fundamentais para qualquer negócio".

A dívida da Globo, pouco mais de US$ 1 bilhão, é praticamente toda controlada por fundos e bancos estrangeiros, que estão cada vez mais exigentes em relação às práticas das empresas no campo ambiental, social e de governança. Ou seja, quem não segue as melhores práticas de ESG é penalizado pelo mercado e se torna mais caro captar dinheiro para realizar investimentos.

A Globo também aderiu ao Pacto Global da ONU, que reúne mais de 20 mil participantes, entre empresas e organizações, em 160 países, e fornece diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania.

Resposta da Globo ao bolsonarismo?

Na época, perguntei a Belmar se a Globo adotar um compromisso desse porte não seria de certa forma uma resposta à posição cada vez mais radical do bolsonarismo em questões relacionadas ao meio ambiente e à pauta de costumes.

"Nossos princípios editoriais não mudam. O relatório é consequência do que já fazemos. A Globo é vanguardista, e sempre abraçamos essas causas. Mas nosso princípio de isenção não muda. Não é sobre ser contra ou a favor, é sobre gerar debate. Isso não muda nosso abraço ao diverso, seguirá sendo um dos nossos pilares".

Ao tolerar o comportamento de Cássia, a Globo possivelmente tenta abraçar a diversidade e fugir da alcunha de "censuradora" de artistas. Mas como os casos de Kanye e Irving mostram, quando personalidades embarcam em jornadas de autodestruição, é muito difícil romper o ciclo.

Quando uma pessoa acredita ter encontrado uma verdade que somente ela enxerga, é inebriante. No caso dos famosos o efeito é potencializado pela atenção e repercussão que isso gera na mídia e redes sociais. Então, as marcas que abraçam esses personagens sangram credibilidade até que se cria uma situação insustentável.

Efeito avestruz e custos irrecuperáveis

Para as marcas em situações envolvendo estrelas, aumenta o perigo do efeito avestruz, como é conhecido o erro de julgamento em que nossas mentes se recusam a reconhecer informações negativas sobre a realidade. O nome vem da noção mítica de que os avestruzes enterram a cabeça na areia em sinal de perigo.

O efeito avestruz é um tipo de viés cognitivo, um dos muitos "pontos cegos mentais" que afetam a tomada de decisões em todas as áreas da vida. Outro erro recorrente estudado pela psicologia, e provavelmente a raiz do negacionismo da Adidas e empresas em situação semelhante, é o viés cognitivo conhecido como falácia dos custos irrecuperáveis.

É por causa da falácia dos custos irrecuperáveis que você começa a ver um filme no cinema e mesmo se após dez minutos perceber que ele é péssimo, você segue vendo até o final. Se você já investiu o tempo de ir até o cinema e gastou com transporte, resiste a simplesmente levantar e ir embora imaginando que de alguma maneira poderá recuperar o que já gastou. O fenômeno também explica por que diversos casamentos duraram muito mais do que deveriam.

A Adidas investiu muito dinheiro e reputação em seu relacionamento com Ye. Esse tipo de investimento faz com que nossas mentes se sintam fortemente apegadas a tudo que já gastamos.

Globo é a empresa mais vigiada do país

A Globo também foi paciente com o ator José de Abreu e suas diversas polêmicas, no caso dele à esquerda. Se deu espaço a Abreu e gastou tanto de seu capital político com o ator, por que a Globo não deveria fazer o mesmo com Cássia? Sem entrar no mérito das polêmicas de Abreu e Cássia, o problema é que o saldo negativo para a imagem da Globo vai crescendo. E independentemente do espectro político, as demandas se tornam cada vez maiores, exigindo malabarismos crescentes para conciliar discurso e prática da empresa.

Carolina Bueno, diretora de riscos e compliance da Globo, em entrevista ao Universa afirmou que na Globo tem "uma exposição muito diferente da exposição corporativa normal". Segundo a executiva, a ligação que a Globo tem com a sociedade "traz uma responsabilidade ainda maior para a área de compliance, porque essas questões têm um interesse público diferente (...) Diferentemente de outras empresas, aqui o debate extrapola o debate interno corporativo".

Carolina está correta. E, justamente pelo fato da Globo ser referência para o mercado e realizar um grande projeto de ESG, tem de ser ainda mais direta e rigorosa nos casos em que os valores da empresa não estão alinhados com o comportamento de seus funcionários.

Ao romper rapidamente com Irving, a Nike evitou maiores danos. Por sinal, a agilidade da empresa nessas decisões tem sido cada vez maior. Não falta à gigante esportiva experiência na área. Em 2020, a Nike rompeu com o jogador Neymar após uma investigação por abuso sexual. O ciclista Lance Armstrong perdeu o contrato após denúncias de doping. No passado, a marca se manteve ligada a Kobe Bryant, Tiger Woods e Cristiano Ronaldo após polêmicas.

A expectativa do público com relação às marcas é cada vez maior. Ficar apenas no discurso não funciona, as pessoas querem ver o discurso em prática. Ao romper com Cássia Kis a Globo perde em curto prazo, sendo atacada pelos apoiadores da atriz. Mas é melhor ser vista como a empresa que rompeu por causa da postura antidemocrática e homofóbica, do que empresa que rompeu pela pressão das crescentes polêmicas e notícias negativas.

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