Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que Globoplay está longe de desafiar Netflix na liderança do streaming
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Nos últimos dias recebi diversas mensagens de leitores surpresos questionando se o Globoplay realmente tinha passado a Netflix no Brasil. Eu mesmo fiquei curioso quando me mandaram um link com o título "Globoplay ultrapassa a Netflix como o streaming MAIS ASSINADO do Brasil" (o destaque para "MAIS ASSINADO" foi dado pela própria publicação).
Mas apesar do significativo crescimento acima de dois dígitos do Globoplay nos últimos anos, o streaming da Globo não passou a Netflix no Brasil e não está nem perto de fazer isso.
Usuário é diferente de assinante. Na semana passada a Bloomberg Línea publicou uma reportagem com uma menção ao Globoplay desafiar a liderança da Netflix. Exibia inclusive uma imagem mostrando o Globoplay com 30 milhões de usuários contra 15 milhões da Netflix. A reportagem diz que "o Globoplay superou a Amazon Prime Video em audiência em janeiro de 2023, mas segue atrás da líder Netflix, segundo dados da Kantar Ibope Media. Mas, em usuários totais (incluindo assinantes pagos ou não), já seria o maior do mercado, segundo fontes do setor".
Primeiramente, é preciso ficar claro que usuário não é a mesma coisa que assinante. Como o próprio texto diz, o número de 30 milhões seria a soma daqueles que pagam e dos que não pagam no Globoplay. No caso da Netflix, toda a base é de pagantes. Ou seja, contabilizar usuários e assinantes como fizeram diversos textos publicados após a reportagem da Línea, não faz sentido.
Além disso, muitos serviços de streaming são "entregues" como benefício, por exemplo, em pacotes de operadoras de telecomunicações. Você pode até contabilizar a assinatura, mas isso não significa que há alguém assistindo.
Quantos assinantes tem a Netflix
De todo modo, os números da FlixPatrol, site que divulga o levantamento afirmando que o Globoplay tem 30 milhões de usuários, são questionáveis. As plataformas de streaming não divulgam seus números de assinantes ou usuários no Brasil. Consultadas pela coluna, Netflix e Globo destacaram este ponto.
A FlixPatrol usa como fonte um número divulgado por uma reportagem do Deadline de janeiro de 2021. O problema é que na conta de 30 milhões do Deadline, considera gente que entra, consome um vídeo e só volta no mês seguinte. Neste caso, comparar o número de usuários ativos mensais (ou diários) seria o indicado, mas como as plataformas também não divulgam esse dado no Brasil, é impossível calcular.
E mais, se o número de usuários do Globoplay fosse de 30 milhões como afirma o Deadline, então o Globoplay já estaria na frente da Netflix há pelo menos dois anos, quando a notícia foi originalmente publicada pelo Deadline. Se usarmos a lógica de usuários, e não assinantes, seria até possível dizer que o Globo.com e o UOL são maiores que a Netflix, já que ambas plataformas têm mais de 100 milhões de usuários únicos por mês, segundo dados do Comscore. Obviamente, uma comparação direta não é adequada.
Netflix tem mais de 19 milhões de assinantes, indica vazamento. Além disso, a FlixPatrol afirma que a Netflix teria 15 milhões de usuários no Brasil. Mas a conta não fecha. Em janeiro de 2021, dados vazados por engano pelo Cade já apontavam a Netflix com 19 milhões de assinantes. Como a base de assinantes da Netflix no mundo, no início de 2021, era de 207 milhões e no final de 2022 chegou a quase 231 milhões, nada indica que o número de assinantes da Netflix tenha caído no Brasil. Provavelmente, a Netflix já tenha superado 20 milhões de assinantes no país.
O número de assinantes do Globoplay, mesmo turbinado pelo BBB, ainda é bastante inferior ao da Netflix. Isso fica claro inclusive pelo tempo de consumo do conteúdo da Netflix frente aos concorrentes. Em janeiro, a Netflix teve cinco vezes mais share que o Globoplay (4,9 contra 0,9, como mostra o gráfico abaixo). Se falarmos em líder de usuários e visualizações, o YouTube seria ainda maior que Globoplay e Netflix somados.
Cabe lembrar que a Netflix investe R$ 88 bilhões em conteúdo por ano e deve faturar mais de R$ 166 bilhões em 2023, o faturamento total da Globo, incluindo TV, Globoplay e demais negócios, deve ficar perto de R$ 15 bilhões/ano). Já o YouTube publica conteúdos gratuitos de usuários e ainda é visto por boa parte dos anunciantes como uma mídia menos "premium" que o streaming e a TV.
Pegadinhas dos números do streaming
Por isso a audiência é a melhor alternativa para comparações. A empresa de pesquisas Kantar Ibope Media oferece ao mercado o Cross Platform View (CPV), ferramenta que mede a audiência de TV Linear (TV aberta e a cabo), vídeo on demand (VOD) e serviços de streaming em todos os dispositivos localizados no Brasil.
Segundo Melissa Vogel, CEO da Kantar IBOPE Media no Brasil, "os dados refletem o alcance e volume do consumo de vídeo, mas não informações sobre a base de assinantes das plataformas. Este dado pertence a cada player, assim como a divulgação ao mercado".
Mesma régua o consumo. Melissa ressalta que "todos os produtos que a Kantar oferece ao mercado possibilitam a seus clientes uma vasta opção de critérios para facilitar uma tomada de decisão assertiva de acordo com seus objetivos de mercado". Porém, "a interpretação dos dados fornecidos por suas soluções cabe aos próprios clientes, que podem analisar o consumo com métricas unificadas".
O CPV, lançado em fevereiro do ano passado, permite aos clientes ver métricas de consumo de vídeo online em diferentes plataformas e devices. "Através do nosso painel central de domicílios que já possuem o People Meter, instalamos também um novo medidor chamado Focal Meter nos roteadores, identificando o consumo de qualquer conteúdo linear e online, em cada um dos devices dentro de uma rede de wi-fi domiciliar, reportando-o sob as mesmas métricas e padrões já consolidados para TV Linear", diz Melissa.
O número que importa
Se para os fãs é divertido acompanhar quem tem mais assinantes e torcer por suas plataformas favoritas, para as empresas este número é cada vez mais uma preocupação secundária. Os anos loucos de "comprar" crescimento ficaram no passado, assim como os juros baixos no mundo e o bom humor dos investidores.
O foco das empresas em streaming cada vez mais é nos lucros. A Netflix, ao lado da Discovery+, são as únicas grandes plataformas de streaming que não dão prejuízo. O Globoplay só deve dar lucro depois de 2027, em um cenário positivo.
Netflix, Disney, Warner Bros. Discovery e Paramount já anunciaram planos para otimizar as operações. Demissões, cortes de custos, fusão de diferentes plataformas e redução do volume de produções estão nos planos.
Não, o Globoplay não passou a Netflix. Mas os fãs do streaming da Globo podem dizer sem pestanejar que o Globoplay é líder mundial na produção de conteúdo brasileiro. É um feito notável para uma companhia nacional que concorre cada vez mais com todas as big techs.
Desafiar a Netflix nunca foi um plano do Globoplay. A meta é ser o líder na produção de conteúdo brasileiro. E neste sentido, lidera sem ameaças.
PS: sobre títulos caça-clique.
Antes que muitos digam que os jornalistas não entendem de estatística e pesquisas, o que é em parte verdade, já que eles fazem parte da população e na média somos bem ruins nesse tópico, vale notar que os títulos apelativos em notícias, mesmo errados, geram cliques. As pesquisas, como a divulgada pela Kantar Ibope Media, dão um ar de credibilidade irresistível a essas matérias. Algo semelhante acontece com os números do Ibope na TV. Mas como Melissa disse, a interpretação dos dados cabe a quem os utiliza.
A reportagem da Bloomberg Línea diferenciava usuários e assinantes, mas quem os copiou posteriormente não fez isso e ainda inventou uma suposta liderança de assinaturas do Globoplay no setor. Nos tempos atuais, em que algoritmos cada vez mais distribuem as notícias e os cliques se tornaram um fator determinante para o sucesso de sites e jornalistas, como já discuti aqui no passado, não raro os números são distorcidos para gerar manchetes clicáveis.
"Devemos ter cuidado para não confundir os dados com as abstrações que usamos para analisá-los", alertava o filósofo e educador William James. Em tempo de caça-clique isso nunca foi tão verdadeiro.
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