Helio de La Peña

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Opinião

Saudade da ginga, da malandragem e do bom humor: parabéns, Arlindo Cruz!

Meu amigo Arlindo Cruz, quanta saudade!

Setembro é mês de festa. Neste sábado (14), você estava completando 66 anos. E o menino, nascido e crescido no subúrbio do Rio, nunca se afastou das suas raízes e pôs nas suas letras toda a energia do carioca do morro. A ginga, a malandragem, o bom humor, gritando com orgulho que seu nome é favela. Potente e criativa.

Para saber como foi a sua vida, basta ouvir seus sambas com atenção. Está tudo ali.

O garoto inquieto, atento aos mais velhos, amante do samba desde a barriga da mãe, dona Aracy. Você faz parte de uma linhagem nobre que começa nas tias da Pequena África, da Praça Onze, dos arredores do Sambódromo.

Você nunca deixou de reverenciar quem veio antes, e não tem um álbum seu que não tenha um agradecimento a Candeia, seu padrinho musical que de tanto admirar, você acabou herdando o dom de versar com uma naturalidade que ninguém sabe de onde vem.

Aqueles que prestam atenção nas suas letras conseguem decifrar um pouco do seu enigma. Percebem sua religiosidade, o peso do axé na sua vida, algo verdadeiro e intenso, presente no seu dia a dia, das refeições, nos dias de festa, nos dias de se guardar para os santos.

Você é filho de Xangô, mas no seu coração tem espaço para Ogum, Oxóssi, Oxalá e Iemanjá. Talvez venha daí inclusive o seu ecletismo musical. O seu samba mestiço, que conversa com o hip hop, com a MPB, o reggae e os ritmos da Bahia. Por isso, o portão da sua casa estava sempre escancarado para a entrada de novas parcerias.

Arlindo Cruz
Arlindo Cruz Imagem: Arquivo Pessoal

Poucos sabem que você estudou desde os 15 anos na Aeronáutica, em Barbacena, tendo um inusitado colega de turma: Marcelo Tas! Sim, ele mesmo, que muito antes do CQC, foi PQD com você, na Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Só não sei se chegaram a fazer algum salto duplo.

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Mas depois dali é que você realmente voou. Primeiro pousou na tamarineira da quadra do Cacique de Ramos, onde, junto com Zeca Pagodinho, Ubirany, Jorge Aragão, Sombrinha e tantos outros, foi cantor e compositor do lendário Fundo de Quintal. Beth Carvalho reconheceu o seu valor e jogou um holofote na sua obra. Mais tarde, Regina Casé te colocou no palco do Esquenta! E o Brasil se rendeu ao seu carisma.

Compositor de uma fertilidade incomparável. Foram mais de 800 canções gravadas! Qualquer dia, qualquer hora, quando parecia distraído, era quando estava mais focado em comunicação direta com os deuses que lhe sopravam belos versos. Candeia, Monarco, Marcelo D2, Rogê, Martinho da Vila, Dudu Nobre, Mart'Nália, Xande de Pilares... sempre cercado de bambas.

Tive a felicidade de te conhecer através do Zeca Pagodinho. Zeca gravava uma música num estúdio em Copacabana e eu fui lá confraternizar. De repente, apareceu você, simpático, bonachão, receptivo a um bom papo. Tomei coragem e confessei que tinha um sonho: fazer um samba com você. Era muita ousadia.

Eu, que nunca tinha cometido uma letra real, apenas as paródias do Casseta & Planeta, de repente ouvi o seu "sim". É sério? Você topa mesmo? Não é papo de carioca? Firmeza.

A partir dali, eu, você e meu parceiro Mu Chebabi, passamos a nos encontrar no quintal da sua casa no Recreio dos Bandeirantes para ver se saía alguma coisa. Eu tinha feito meu dever de casa e levei praticamente uma redação, quadrada, sem rima, com basicamente uma ideia. Você com toda a paciência, foi burilando os versos, arredondando a ideia, junto com uma melodia incipiente.

Os encontros foram ficando frequentes. A intimidade cresceu. A rivalidade do seu Flamengo com o meu Botafogo alimentou a chama da gozação. Meu time não passava por um bom momento e você zoava: "E em algum momento esteve bem?" Era raro, mas uma vez ou outra, eu dava a forra.

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Você me levou pela mão para a quadra do Império Serrano, me apresentou seus músicos, Marechal, Esguleba, seu mano Acyr Marques, toda a turma. Eu, Ana, vocês, os filhos, viramos uma família.

Arlindo Cruz e Hélio de la Peña
Arlindo Cruz e Hélio de la Peña Imagem: Arquivo Pessoal

Até que um dia, você me mostrou o rascunho de um samba que era mais uma brincadeira com nomes de atores e atrizes da Globo: "A Renata sorria" (referência à Renata Sorrah) , "Eu e Toni...erramos", algo por aí. Aí te falei que a Globo podia gostar disso. Levei a ideia na emissora.

E como resposta, recebemos a encomenda de fazer um samba para apresentar a programação do ano seguinte. Assim, surgiu em 2008 o Samba da Globalização. Foi um sucesso. A nova programação do ano era apresentada ao público com um clipe diferente, e uma versão da letra trazendo as novidades do ano.

O dia que me achei muito foi quando você me chamou a sua casa para contar uma novidade. Maria Rita ia se lançar no samba e encomendou umas músicas. E você me mostrou em primeira mão "O Que É o Amor". Uma aula de um samba romântico, lírico, sem pieguice. Como diria o falecido Wilson das Neves, "ô sorte"!

Outro momento que guardo com carinho foi quando você me chamou para escrever contigo a letra de "Citações", que você gravou no álbum "Batuques e Romances". O poeta vai buscando citações de amor nos romances, nas belas canções, nos livros sagrados... e a conclusão era: "já virou indefinível nossa relação".... Romance e humor na dose certa.

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Em 2016, o Rio ganhou um presente. O belo clipe "Os Deuses do Olimpo", do brother Estêvão Ciavatta, celebrando a Olimpíada da cidade, quando tive a honra de representar Poseidon, o Deus dos Mares, ao som da sua voz.

Até que, em 2017, recebo a notícia que me deixa em choque. Corro pro hospital e chego antes de você. Depois de um dia de celebração e êxtase, em que você foi homenageado com um musical, um AVC te tira do ar. E nossa conversa estancou. Babi, Flora, Arlindinho, toda sua família sabe que estou sempre aqui, alerta para o que precisar, celebrando cada progresso, por menor que seja.

Semanas atrás, lamentei muito não poder te ligar para sacanear, depois que meu Bota deu uma surra de 4x1 no seu Mengo. O seu lugar sempre vai ser Madureira, ainda que sua consciência pareça estar numa cidade muito longe daqui. Mas estaremos juntos. E o show tem que continuar.

Parabéns, meu sambista perfeito!

*Esta coluna não seria possível sem a ajuda da minha comadre Babi Cruz e dos amigos Estêvão Ciavatta e Vinícius Trevous.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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