Eles ainda estão aqui! Filme de Walter Salles mostra proximidade do horror
Fui com minha mulher, Ana, e meus filhos, João, 22, e Antônio, 20, assistir ao filme do momento. "Ainda Estou Aqui", do botafoguense Walter Moreira Salles. A obra foi premiada no Festival de Veneza, como Melhor Roteiro. E já é o candidato brasileiro ao Oscar, só não sabemos se será escolhido para a cerimônia.
O filme merece os elogios. Não só pelo roteiro, como pela direção, direção de arte, trilha sonora. Sem falar na atuação impecável de Fernanda Torres, Selton Mello e na participação especial de Fernanda Montenegro, que silenciosamente rouba a cena. Consegue reter o olhar do espectador como um ímã, a cada vez que aparece.
Diversas razões me motivaram a ir ao cinema com a família. A história de Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, precisa ser conhecida por todo mundo. Era um engenheiro civil, ex-deputado federal do PTB cassado e exilado pelo regime militar. Não tinha a menor simpatia pela ditadura em que vivíamos. Por isso, foi acusado de ter ligações com Lamarca, o que não era verdade. O engano lhe custou a vida e o desaparecimento do seu corpo para sempre.
Achei importante que meus filhos tivessem ideia de um dos aspectos mais tenebrosos do governo daquela época. Por incrível que pareça, alguns hoje manifestam "saudades dos tempos que não viveram".
Waltinho conduz o tema pesado com delicadeza. Foca o cotidiano da família, que ele conheceu por dentro, na juventude. Foi uma abordagem muito acertada. A rotina doméstica de uma família da zona sul carioca torna o drama muito mais próximo. Mostra que os militares eram implacáveis nos anos de chumbo. E os horrores poderiam acontecer com qualquer um, envolvido ou não, bastavam suspeitas. Rubens foi sequestrado em casa por agentes policiais em janeiro de 1971, em pleno governo Médici, o mais sanguinário do período da ditadura. Morreu após ser torturado.
O filme retrata mais sua mulher, Eunice. O casal teve 5 filhos, quatro mulheres e um garoto caçula, o escritor Marcelo Rubens Paiva. Ele é o autor do livro que deu origem ao filme. Vemos também como a vida alegre de uma família que vivia com as portas da casa abertas para os amigos, foi obrigada a cortar todos os laços e manter as cortinas fechadas. Apesar de morar em frente à praia do Leblon. Eunice costumava relaxar e nadar no mar em frente à sua casa. Ao levarem seu marido, a vida muda completamente.
Passaram a ser vigiados por agentes policiais que moraram por vários dias dentro da residência. A família perdeu toda a privacidade. Depois, ficavam de tocaia em carros, de olho no que se passava ali. O momento mais absurdo foi quando Eunice e Eliana, sua filha de 15 anos, foram levadas para o quartel onde seu marido estava preso.
A menina foi usada para pressionar psicologicamente os pais, que deveriam delatar algo que não sabiam. Eliana foi solta um dia depois. Eunice ficou presa por meses, perdendo a noção do tempo.
Meus filhos tiveram noção da proximidade daquele horror pelas imagens. A recomposição de época foi perfeita. A casa deles ficava na avenida Delfim Moreira, na orla do Leblon. O prédio azul, seu vizinho, permanece lá do mesmo jeito que há 50 anos. Num certo momento, Fernando Gasparian, amigo de Rubens, conta que vai se exilar para esperar passar aquela fase terrível. O filme mostra a Livraria Argumento. Meu filho pergunta se é a mesma que a gente frequenta. Explico que era de propriedade de Fernando e, hoje, é tocada por seus filhos, Marcus e Laura, com quem tenho boa relação. É tudo muito próximo.
Para mim, mais ainda. Entrei na Escola de Engenharia da UFRJ em 1978, ainda no governo Geisel. Atuei no movimento estudantil, o que deixava meu pai em pânico. Eu não achava que corria tanto risco, o regime já estava cedendo, o clamor por democracia era cada vez maior. Para meus filhos, essa época é um passado longínquo, a ponto de não reconhecerem o presidente Médici numa foto típica de repartição pública.
Walter Salles é econômico nas imagens de tortura e violência. Mas o quartel general da tortura é mostrado. E quem viveu a época sabe que se trata do temido quartel da rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde o horror foi praticado com crueldade.
Acompanhamos Eunice na luta por notícias do marido. Sempre tentando evitar demonstrar tristeza para os filhos, não queria vitimizá-los. Professora de literatura, depois de aposentada, se formou em direito e foi em busca do corpo jamais encontrado. Fernanda Torres representa Eunice com maestria, mudando o semblante de mãe feliz, realizada, que se torna pesada, triste, tentando não transparecer a sua dor.
Com a criação da Comissão da Verdade, durante o governo Fernando Henrique, nos anos 1990, Eunice, já idosa, tem seu direito reconhecido. Somente em 2014, o governo admitiu que seu marido foi morto nos porões da ditadura. A viúva teve, enfim, o atestado de óbito do marido. Uma conquista, uma mórbida alegria.
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Quero receberNa cena, Eunice está acompanhada de Marcelo, já adulto. O escritor bem sucedido, muito bem interpretado por Antonio Saboia, está numa cadeira de rodas, por conta de um acidente numa cachoeira na juventude.
Na fase final de sua vida, em avançado estado de Alzheimer, Eunice é representada por Fernanda Montenegro. Ela se mantém alheia ao mundo. Seu olhar só modifica ao passar na tevê uma notícia de seu finado marido.
Uma história triste, que ainda assim, alguns insistem que esse seria o melhor caminho a seguir. O exemplo mais recente é o do chaveiro Francisco Wanderley Luz, que se explodiu num atentado frustrado na Praça dos Três Poderes.
Remeteu a outro atentado, em 30 de abril de 1981, no centro de convenções do Riocentro. Um sargento queria promover uma carnificina durante as comemorações do Dia do Trabalhador. A bomba detonou no seu colo dentro do carro. No momento, acontecia um mega show com artistas, como Chico Buarque, Caetano, Gil, Gonzaguinha, Elis e muitos outros.
Assim como o sargento, o terrorista Wanderley aspirava ser um herói. Para alívio geral, foi apenas mais um Errorista. Eles ainda estão aqui, mas não queremos retornar a esses tempos horríveis.