Joyce Pascowitch

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Opinião

Sandy e Elis Regina: talento, inquietação e a dificuldade do mundo real

No documentário Elis & Tom, tem uma hora em que um arranjador muito famoso hoje — mas principiante naquela época — fala sobre a qualidade dos cantores, compositores e arranjadores dos anos 70 e início de 80, e os músicos de hoje. Sempre que a gente cai nesse assunto, comparar os tempos de hoje com os tempos de lá atrás, pinta esse tipo de saudosismo, de nostalgia.

O pior é que sinto isso como uma verdade. Imagino que qualquer pessoa que for assistir esse documentário dirigido brilhantemente por Roberto de Oliveira — com colaboração de Nelson Motta no roteiro e fotografia de João Wainer—, vai perceber e entender muito bem do que estou falando: as primeiras imagens de Tom Jobim ao piano compondo, fumando, bebendo, sendo sarcástico, são poesias. Além do que pessoalmente fiquei tremendamente impressionada como ele era bonito. Que homem bonito!

Lembrei de repente das imagens dele mais velho e também pensei o que o tempo faz com a gente. Não estou falando como tiete nem dele, Tom, nem de Elis Regina: sempre admirei os dois, mas não faziam parte do meu universo. Mas ao embarcar nessa viagem, fiquei apaixonada de cara pelos acordes secos e minimalistas, conforme a filha, Elizabeth Jobim, fala em várias cenas e como isso transformou a cantora Elis, a intérprete, em outra coisa mais profunda, humana e verdadeira.

Engraçado aprender que os dois não se gostavam exatamente, não se admiravam. Não eram exatamente próximos. Gostei demais de aprender os detalhes das personalidades e do trabalho deles em conjunto por meio dos músicos e arranjadores, nas falas de André Midani, muito bem-humorado, de Nelson Motta.

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E não sei por que logo no início, talvez por eu ter visto na véspera a Sandy no Altas Horas, de Serginho Groisman, na Globo, com o agora ex-marido e o pai, não sei por que juntei a fragilidade das duas nesse recorte, nesse momento.

Sandy mostra que é uma fortaleza e que segura todas as ondas. Como mulher adulta, sei que as coisas não são bem assim. Já Elis escancarava sua fragilidade, sua inquietude, seu deboche, seu medo. Vi Elis —enxerguei isso— num triângulo com César Camargo Mariano, seu marido, pianista e arranjador, e Tom Jobim, o compositor, o maestro, o muso.

Vi Sandy entre seu agora ex-marido Lucas Lima, e seu pai Xororó. Na hora fiz uma ligação direta entre essas duas mulheres de dois tempos tão distintos, as duas talentosas, cada uma a sua maneira, as duas obcecadas pela qualidade. Um dos filhos de Elis aparece nos bastidores da gravação desse disco, enquanto o filho de Sandy ninguém nunca viu. Dois jeitos diferentes de enfrentar a vida e as agruras de ser famosa. Elis cheia de emoção, temperatura alta, sem papas na língua. Sandy querendo mostrar controle total da situação.

Enquanto o país, ou boa parte dele, só falava da separação de Sandy, eu fui impactada com as imagens mostrando como era diferente a vida de uma estrela absoluta da MPB dos anos 1970. Os talentos mudaram, as mulheres mudaram, os tempos mudaram: uma ducha de água fria.

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A Elis que conheci num voo de Nova York para São Paulo, final de janeiro — ou seria inicio de fevereiro, ou mesmo março— de 1980 já não era a que vi no cinema. Viemos sentadas uma ao lado da outra durante mais de 10 horas e conversamos bastante. Ela estava vindo da casa de Wayne Shorter, onde havia passado uma temporada, e a percebi um tanto quanto angustiada.

Falamos de signos, ela me disse que era peixes com ascendente em gêmeos. Falamos dos Estados Unidos, falamos do Brasil, falamos de música. Minha lembrança dela tem a ver com uma inquietação e um desconforto em relação à vida muito grandes, o que foi comprovado dois anos depois, quando ela morreu.

Parecia que ela tinha os pés fora do chão, uma inconstância e dificuldade de lidar com o mundo real. Foi isso que notei, foi isso que senti. A vida com certeza não estava fácil para ela. Acho que a vida nunca foi nem nunca será fácil para artistas de verdade, como Elis. A arte cobra um preço. Costuma ser muito alto. Imagino que a vida também não deve estar muito fácil no momento para Sandy.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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