Buraco é mais embaixo: o que falta no filme de Ângela Diniz e Doca Street?
Dias muito complicados, o mundo literalmente desabando à nossa volta e o streaming virou de repente uma ferramenta quase que vital, necessária mesmo para escapar um pouco dessa realidade difícil e tentar refrescar alma. Foi exatamente por isso que escolhi assistir ao filme sobre Ângela Diniz na Prime Video.
Conheço a história de perto, eu frequentava Búzios nessa época, quando o crime aconteceu lá. Conhecia ela de vista e já tinha ouvido falar muitas histórias sobre Raul Street, o Doca, casado naquela época com Adelita Scarpa, herdeira de uma das famílias mais icônicas de São Paulo.
O que achei do filme ainda é um emaranhado para mim. Eu explico: para quem nunca acompanhou essa história, o filme faz pouco sentido, não acredito que se sustente. E para quem conhecia um pouco, quem acompanhou mesmo que de longe toda essa tragédia, o buraco é muito mais embaixo.
Uma coisa é clara: temos que celebrar o fato de não existir mais crime em defesa da honra em casos semelhantes, um trunfo. Mas a vida desses dois ia bem além do que eu vi na TV — e eu, sinceramente, gostaria de ter visto na tela muito mais. A história rendia muito, tinha material, poderia virar tema para muita discussão, muitos debates, muito aprendizado. Mas não foi bem isso que aconteceu.
Por exemplo, o que Ibrahim Sued representava na época era muito mais do que aquele personagem bem secundário do filme. Ele que introduziu Ângela no mundo da alta sociedade do Rio e de São Paulo, pois ela era de Belo Horizonte, onde morava com o primeiro marido e três filhos. Ibrahim era o colunista mais famoso da época, responsável inclusive pelo apelido de Pantera que colou em Ângela assim como sua fama de mulher livre e sem qualquer preconceito.
De cara, logo no início do filme, a gente percebe que essa história não ia acabar bem: droga, tesão e dinheiro com muita bebida nunca deu final feliz. Aliás, a questão da droga, que era bem relevante para os dois, não aparece no filme. E a bebida surge numa intensidade quase que discreta, bem menor do que a realidade.
Outro detalhe importante que não foi incluído no roteiro era uma figura central na história real: a alemã Gabrielle Dayer, que eu vi pessoalmente muitas vezes circulando pra Búzios, pela praia e no restaurante La Tortue, que, aliás, eu frequentava. Cheguei a vê-la por lá algumas vezes naqueles tempos.
A liberdade de Ângela Diniz e seu espírito livre eram coisas raramente vistas mesmo naquele pedaço de paraíso, onde acontecia de tudo. Dificilmente seria aceita por um paulistano tradicional com jeito de playboy: era areia demais para esse caminhão. Imagino que para qualquer outro também, era muita intensidade.
O que mais deu certo no filme foi a escolha dos dois protagonistas: a performance dos atores, tanto Ísis Valverde quanto Gabriel Braga Nunes me convenceu. Senti muita falta do cenário real de Búzios, transportado pelo diretor Hugo Prata para o sul da Bahia, na região da praia do Espelho, entre Trancoso e Caraíva.
Por outro lado, achei boa a reconstituição de época, das festas, gostei do figurino e adereços também. Mas fiquei meio incomodada, porque eu me perguntava que história era aquela, que parecia ser a de Ângela e Doca, mas que, na verdade, parecia uma outra história, de outra Ângela e talvez outro Doca também.
A questão do feminino e do ataque à mulher me parece bastante clara. Acho que faltou iluminar outros detalhes também importantes, como a história dos filhos e a vida pregressa de Angela. É bom lembrar que Búzios naquela época era o lugar mais charmoso do Brasil em termos de praia, com os melhores restaurantes, com os turistas mais bem vestidos, com gente do mundo inteiro além de brasileiros abastados. Além de rota do tráfico de drogas.
Como num flashback bem pessoal, me lembrei que passei um fim de semana nos anos 1980 ou 1990 em Jaboticabal, interior de São Paulo, na casa da família Street — eu tinha amigos em comum. Vi de relance, ao longe, Doca Street, no tempo que ele ainda estava solto, em liberdade, antes de ser condenado. Devo ter ficado tão assustada que não consigo dizer exatamente hoje em dia o que senti naquele dia.
Nesse mesmo entorno, eu conhecia o casal que era dono da casa comprada por Ângela Diniz, onde ela e Doca se instalaram, na praia dos Ossos, de frente para o mar, cenário do crime: era de Maria Alice e José Hugo Celidônio, ele um chef famoso e o casal, muito conhecido na alta sociedade do Rio.
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Quero receberQuanto a Gabrielle Dayer, alemã pivô da briga final do casal, ela morreu quatro meses depois no mar da praia da Ferradura, perto também da praia dos Ossos. Não se sabe se crime ou se caiu de um penhasco. Ela teria chegado a trabalhar numa boate suspeita em São Paulo, a famosa La Licorne, onde foi acolhida após ter seu nome envolvido na morte de Angela.
Essa personagem, apesar de fundamental nessa historia, acabou não aparecendo no filme, nem a história, nem a personagem. Pena. Perdemos.
Como a gente pode ver, tudo isso daria um belo filme. Não foi exatamente o que aconteceu. Vale apenas como aperitivo para uma pesquisa maior sobre quem foram realmente os personagens e como aconteceu de fato essa história tão maldita.
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