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A história maluca do CD vendido por R$ 10 milhões que virou alvo da Justiça
Na coluna da semana passada, datilografei sobre o "Once Upon a Time in Shaolin" (2015), álbum do grupo de rap Wu-Tang Clan vendido por surreais US$ 2 milhões (cerca de R$ 10,4 milhões na cotação atual), valor que deu a ele um lugar no Guinness.
E, a julgar pela quantidade de cliques, muita gente quis saber mais da história do disco —na verdade um CD duplo— mais caro do planeta. E de fato existe uma sequência pitoresca de eventos que merece ser contada em mais linhas por aqui.
O início
Tudo começou em 2007, quando o grupo decidiu entrar em estúdio para forjar seu álbum mais grandioso e espetacular da carreira. As gravações duraram longos seis anos, culminando em uma inédita estratégia de marketing.
Por arbítrio do próprio Wu-Tang Clan, somente uma cópia seria produzida e comercializada em leilão. Com preço podendo chegar até os limites do infinito. Segundo o grupo nova-iorquino, um dos mais reconhecidos do rap mundial, a justificativa era simplíssima.
Obra de arte
Sentindo que o valor do CD físico e da música em geral haviam despencado com a pirataria e o streaming, o produtor Cilvaringz decidiu devolver à música seu status de "belas artes". Como? Criando uma obra única de inspirações renascentistas.
A arte contemporânea vale milhões em virtude de sua exclusividade. Adotando essa abordagem e oferecendo a música como uma mercadoria encomendada, esperamos inspirar e intensificar o debate sobre o futuro da música.
Escreveu na época o Wu-Tang Clan em seu site
Antes de continuarmos, é preciso frisar que essa não era exatamente uma ideia original. Em 1983, o francês Jean Michel Jarre já havia lançado um álbum com uma única cópia, chamado "Music for Supermarkets". Mas esse assunto merece uma coluna só para ele.
E o que o disco do Wu-Tang Clan tem de especial?
Para começar, ele foi confeccionado em uma suntuosa "case" níquel-prata entalhada à mão. Além do CD, o pacote ainda traz um manuscrito encadernado em couro com as letras das músicas e um certificado de autenticidade.
Mas o mais curioso é o contrato que acompanha o pacote, que estipula que a obra não pode ser explorada comercialmente até o ano de 2103.
Por que 2103?
- Porque marcará os 88 anos do lançamento.
- Porque a formação original do Wu-Tang Clan tinha 8 membros.
- Porque a soma dos números de 2015, ano que em foi lançado, dá 8.
- Porque a Paddle8, casa responsável pelo leilão, tem 8 no nome.
- Porque o 8, quando girado em 90 graus, forma o símbolo do infinito, que foi usado no álbum "Wu-Tang Forever" (1997).
Enfim, nada menos do que esperaríamos de americanos, os sultões do marketing.
Após meses de lances e diligências, o processo do leilão concluiu-se em agosto de 2015, com o CD permanecendo o tempo todo intocado em um cofre de hotel no Marrocos, onde as faixas foram parcialmente produzidas.
O nome do felizardo vencedor: Martin Shkreli, um bilionário americano, na época com 32 anos, criador de fundos multimercados e CEO da gigante Turing Pharmaceuticals. E ele pagou US$ 2 milhões.
De acordo com representantes do grupo, ao descobrir a identidade do comprador, uma "parte significativa" do dinheiro foi revertida para instituições de caridade e pesquisa pela cura do câncer.
Mas esta história estava longe de acabar
Em 2016, para surpresa geral, Shkreli afirmou em entrevista que tinha planos de destruir o CD ou "instalá-lo em algum lugar remoto para que as pessoas fizessem uma busca espiritual para poder ouvi-lo".
Ele ainda prometeu lançar o álbum gratuitamente caso Donald Trump vencesse as eleições presidenciais de 2016, o que acabou acontecendo, mas, em vez disso, transmitiu trechos das músicas na internet.
Essa loucura toda teve uma reviravolta digna do cinema (policial) de Hollywood
Após misteriosamente colocar o álbum em leilão no eBay em setembro 2017, alcançando US$ 1 milhão, Shkreli foi preso e posteriormente condenado por fraudes fiscais em investimentos que somavam mais de US$ 7 milhões.
A pena do "empreendedor mais odiado dos EUA", liberado após pagar fiança, previa o confisco de bens pela Justiça americana. Um deles? Adivinhe.
O rapper RZA, líder do Wu-Tang Clan, até tentou recomprar o álbum de volta, mas os esforços não deram resultado.
Que fim "Once Upon a Time in Shaolin" teve, afinal? Foi para a biblioteca da Casa Branca?
Não. No mês passado, o disco foi novamente leiloado, agora de forma sigilosa, pelo governo dos EUA para quitar o rombo nas contas públicas. Hoje repousa nas mãos —provavelmente nos cofres— de um comprador anônimo. Nome e quantia desembolsada serão divulgados em breve.
Você ficou curioso sobre o conteúdo desta hóstia do rap, que jamais chegou aos ouvidos do público e talvez jamais chegue? Eu fiquei. Mas há pistas por aí só esperando os DETETIVÕES da internet.
Por exemplo, esta é a capa cadastrada nos sites Discogs e Wikipedia
E este é o tracklist, segundo o site The Complex
Shaolin School (CD1)
"Entrance (Intro)" - 1:57
"Rivals" - 4:12
"Staple Town Pt. 1 (Interlude)" - 0:44
"Ethiopia" - 7:55
"Handkerchief" - 0:49
"Staple Town Pt. 2 (Interlude)" - 1:10
"The Pillage of '88" - 6:52
"Centipedes" - 7:14
"The Widow's Tear" - 3:55
"Sorrow" - 5:45
"Shaolin" - 6:14
"The Saga Continuous" - 6:58
"Shaolin Soul (Exit)" - 3:41
Allah School (CD2)
"Sustenance (Intro)" - 0:43
"Lions" - 6:08
"Since Time Immemorial" - 2:32
"The Slaughter Mill" - 6:31
"The Brute" - 3:24
"Iqra" - 7:23
"Flowers" - 5:49
"Poisoned Earth" - 4:34
"Freedom (Interlude)" - 2:25
"The Sword Chamber" - 4:05
"Unique" - 2:32
"The Bloody Page" - 5:09
"Salaam (Outro)" - 1:31
Quem está nele?
Além, obviamente, do próprio Wu-Tang Clan e seus rappers afiliados, o álbum traz participações da cantora Cher, que aparece duas vezes, da atriz Carice Van Houten (a Melisandre de 'Game of Thrones') e de jogadores do Barcelona.
Como era 2015, será que teremos Daniel Alves e Messi mandando ver no flow?
A pergunta de US$ 2 milhões: e a música, presta?
Segundo os cerca de 150 convidados para uma audição de 13 minutos realizada em março de 2015 em Nova York, sim. Muito provavelmente é um excelente álbum de hip hop. A revista Rolling Stone escreveu que, se os 128 minutos completos soarem como a prévia, "este poderia ser o álbum mais popular do grupo desde 97".
A sonoridade é relatada como uma volta aos primeiros e gloriosos anos de banda, quando apostava no chamado "hardcore hip hop", numa guinada radical comparável as de discos como "All That You Can't Left Behind", do U2, e "Death Magnetic", do Metallica.
Ou seja, um prato cheíssimo para fãs menos e mais fervorosos de rap, que infelizmente não vão ouvir nada até 2103. Ou não.
O contrato de venda deste "Basquiat do hip hop" indica que o disco pode ser lançado desde que seja gratuitamente e que suas músicas podem ser executadas em festas privadas. Se você estiver em uma delas, conte para nós.
O que o senhor colunista pensa de toda essa ultraexclusividade, você deve estar se perguntando?
Bem, para concluir, tomo emprestado o comentário que o leitor "Alan Demanboro" deixou por aqui na semana passada, que me parece sagaz e sintetiza bem minha opinião, que talvez seja apenas um pouquinho menos radical.
Estamos falando de um grupo de rap que criou uma promoção ultracapitalista, ultraburguesa e totalmente contra o rap, lucrando com 'segredo, exclusividade, luxo e sofisticação'. Ou seja, com segregação. Tudo nessa história é o contrário da filosofia do rap/hip-hop. É o equivalente artístico a vender a alma. Eu tinha interesse em ouvir Wu-Tang Clan porque sou muito fã de rap, mas esse interesse acabou de acabar."
Você concorda com ele?
Até o próximo post.
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