É o fim de uma era. Confirmando especulações, a Rede Globo informou que encerrará de vez o lançamento de trilhas sonoras de novela em formato físico, após cinco décadas de sucessos em uma das dobradinhas mais bem-sucedidas da cultura popular brasileira.
A decisão da gravadora Som Livre, vendida recentemente à multinacional Sony Music, vale tanto para os folhetins quanto para CDs de cantores que integram seu casting.
As últimas trilhas lançadas fisicamente foram "Amor de Mãe Vol. 2" e "Salve-se Quem Puder Vol. 1". De agora diante, para escutar as músicas do personagens mais amados —e odiados— do país, só recorrendo às versões do streaming. E olhe lá!
Mas o que isso significa de fato, você pode estar se perguntado?
Eis os meus cinco centavos sobre o assunto.
Centavo 1
CD deixou de ser uma mídia comercialmente viável
O encerramento não surpreende. Com a pirataria dos anos 90 e 2000, o MP3 e, mais recentemente, a hegemonia do streaming, CDs deixaram de ser vendidos massivamente.
O Grupo Globo, cujo setor artístico passa por uma das maiores reformulações da história, na verdade não está fazendo nada além do óbvio. Uma empresa vive de lucro, afinal.
Basta lembrar que as trilhas sonoras globais mais recentes receberam tiragens quase simbólicas de cerca de mil unidades, ante os mais de 2 milhões de cópias comercializadas com "O Rei do Gado" (1996), um dos discos mais vendidos de todos os tempos no Brasil.
Centavo 2
O Brasil é um país de indústria paupérrima
Se estivéssemos no dito primeiro mundo, com indústria pujante e economia estável, é certo que seria diferente. Lá fora, o suporte físico resiste como forte nicho de mercado e sem estar restrito apenas ao de usados, como ocorre no Brasil.
Os maiores estúdios de cinema e séries do mundo continuam lançando fisicamente, e com sucesso, edições especiais de suas trilhas, sejam em vinil, CDs e K7, como este lindíssimo de 'Stranger Things'.
Centavo 3
O papo de que a Globo miraria o público "geek" com série e novelas não é bem assim
Apesar de este ser o discurso adotado nos últimos anos, com alto investimento na Globoplay e presença em eventos como a CCXP, ele funciona só até a página 2.
Conservadora, a emissora demonstra ainda não entender quem é seu público mais devoto —vamos chamá-los genericamente de 'nerd'— e quais são seus novos hábitos de consumo, que vão além de assistir ao streaming e ouvir podcasts. Falta visão.
Editar —ou reeditar— trilhas em edições limitadas em LP para atender aos nerds de novelas, aproveitando o boom do vinil, traria bons frutos ao produto televisivo. E mostraria que a emissora está olhando para frente —e para trás, ao mesmo tempo, porque o tempo é cíclico.
Na trilha da sua vida - Relembre dez discos de novela que fizeram sucesso
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Os autores do livro "Teletema", que analisa trilhas sonoras de novelas da Globo entre os anos 1960 e 1980, comentam discos de dez tramas emblemáticas. Por Pablo Miyazawa
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"Estúpido Cupido" (1976) - Vendagem: 753.062 cópias (nacional); 528.050 (internacional). Com hits do rock brasileiro e estrangeiro de décadas anteriores, este foi o primeiro grande sucesso de vendas de trilha de novela da Globo (e uma das raras em que a versão nacional vendeu mais do que a internacional). O destaque foi a música-título, sucesso na voz de Celly Campello na virada da década de 1960. "A ideia de pôr essa canção na abertura e de ela dar título à trama surgiu quando o produtor musical Guto Graça Mello pegou um avião e nele encontrou o irmão de Celly, o também cantor e compositor Tony Campello", conta Guilherme Bryan.
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"Dancin' Days" (1978) - Vendagem: 249.640 cópias (nacional); 1.371.021 (internacional). A novela estrelada por Sônia Braga acompanhou o estouro mundial da disco music e tinha uma discoteca como cenário principal. O tema mais marcante foi o faixa homônima de abertura ("Abra suas asas/ Solte suas feras"), composta por Nelson Motta e gravada pelas Frenéticas. "Foi um hit que ultrapassou a novela e o fenômeno disco, tornando-se uma das músicas mais conhecidas do repertório nacional e obrigatória em qualquer festa até hoje", diz Vincent Villari. A trilha internacional foi um sucesso ainda maior e mais dançante: das 14 faixas, nove exploravam o gênero, com destaque para o medley do conjunto vocal brasileiro Harmony Cats para os hits do filme "Os Embalos de Sábado à Noite".
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"Roque Santeiro" (1985) - Vendagem: 951.204 cópias (nacional, volume 1); 290.463 (nacional, volume 2). Como trilha nacional completa, é a mais vendida e marcante da história das novelas e representa um caso raro: não houve uma versão internacional, mas dois discos só com músicas brasileiras. "A forma como as músicas aderiram aos personagens e à trama faz com que o telespectador que a acompanhou ainda hoje se recorde de sua trilha", diz Villari. "É provavelmente o caso mais significativo em que a música ajudou no sucesso da novela e vice-versa." Entre os hits na trama surrealista de Dias Gomes: "Dona" (Roupa Nova), "De Volta pro Aconchego" (Elba Ramalho), "Vitoriosa" (Ivan Lins), "Mistérios da Meia Noite" (Zé Ramalho) e "Isso Aqui Tá Bom Demais" (Dominguinhos e Chico Buarque), entre outras.
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"Selva de Pedra" (1986) - Vendagem: 359.052 cópias (nacional); 949.362 (internacional). Dois hits com vozes femininas puxaram as vendas da trilha nacional deste remake estrelado por Tony Ramos e Fernanda Torres: "Perigo", com Zizi Possi, e "Demais", versão de "Yes, It Is", dos Beatles, com Verônica Sabino. Apesar de o disco internacional ter apelo mais moderno, com faixas de The Cure, Sade Adu, Elton John e Pet Shop Boys, o grande hit foi uma balada açucarada: "Yes", do cantor norte-americano Tim Moore. "Ao ser informado do sucesso que a música estava fazendo no Brasil, ele desembarcou aqui e fez o máximo de shows e participações em programas de TV, como o 'Globo de Ouro'", relata Villari. "Quando a novela acabou, ele retornou aos Estados Unidos."
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"Roda de Fogo" (1986) - Vendagem: 469.027 cópias (nacional); 1.151.075 (internacional). A saga de vingança de Renato Villar (Tarcisio Meira) foi embalada pelo rock envolvente de "Pra Começar", cantada por Marina, mas foi a balada "Transas" (Ritchie) que catapultou as vendas da trilha nacional. Bem balanceado, o disco também trazia nomes então emergentes do rock nacional, (Capital Inicial, Paralamas do Sucesso), cantores de MPB (Simone, Djavan) e nomes populares como Wando e Rosana. E, apesar de pouco adequado aos personagens da trama, o repertório internacional ultrapassou 1 milhão de cópias vendidas, mirando em cheio nos grupos de sucesso na época, como Dire Straits, Peter Gabriel, Simply Red e Genesis.
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"Hipertensão" (1986) - Vendagem: 176.956 cópias (nacional); 990.329 (internacional). Outro caso em que a escolha do repertório estrangeiro acertou em cheio no público de rádio FM. Sucesso estrondoso de vendas (para uma trilha de novela das sete), o disco internacional foi onipresente nos bailinhos da época, graças a hits como "Human" (Human League), "Glory of Love" (Peter Cetera) e "Papa Don't Preach" (Madonna). Remake da novela "Nossa Filha Gabriela" (1971), "Hipertensão" ousou na trilha nacional, com a pesada "AAUU" do Titãs como o tema dos três personagens idosos Napoleão, Romeu e Candinho (respectivamente, Cláudio Correa e Castro, Ary Fontoura e Paulo Gracindo), que disputavam a paternidade da mocinha Carina (Maria Zilda). "Outra surpresa foi a gravação de 'Me Chama', de Lobão, feita por João Gilberto exclusivamente para essa trilha", acrescenta Bryan, citando ainda a boa repercussão de "Sintonia" (Moraes Moreira) tanto entre o público jovem quanto entre o mais velho.
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"O Outro" (1987) - Vendagem: 425.822 cópias (nacional); 1.164.299 (internacional). A trama estrelada por Francisco Cuoco em papel duplo se passava no Rio, mas a banda escolhida para o tema de abertura era paulistana: o Ira!, com "Flores em Você". "Essa trilha foi produzida pelo Liminha, que era produtor musical da Warner, numa época em que as trilhas passaram a ser cuidadas inteiramente por profissionais vinculados às grandes gravadoras", explica Bryan. O disco alavancou o hit "Kátia Flávia", de Fausto Fawcett, e popularizou ainda mais os nomes de Cazuza e Kid Abelha. A presença de Malu Mader na capa da versão internacional, como Glorinha da Abolição, de minissaia e botas combinando, ajudou na expressiva venda da trilha focada no pop-rock, com Crowded House, Pretenders, Bad Company e Eurythmics.
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"Mandala" (1987) - Vendagem: 542.948 cópias (nacional); 689.135 (internacional). Não há como recordar "Mandala" e não visualizar Vera Fischer (Jocasta) e Nuno Leal Maia (Toni Carrado). E, consequentemente, é impossível não se lembrar de "O Amor e o Poder", eternizada por Rosana. A música, conforme conta Guilherme Bryan, quase não entrou na novela. "Rosana implicou com a letra do Claudio Rabello e decidiu que não a gravaria, faltando dois dias para entregar o disco. Ele retornou então com uma letra relacionada à mitologia, e ela adorou", diz. "Depois, [o autor] Dias Gomes adorou a música e a queria na abertura, mas, ao descobrir que se tratava de uma versão [de 'The Power of Love', da cantora americana Jennifer Rush], desistiu da ideia." A abertura acabou por conta de uma rara faixa instrumental, "Mitos", composta por Cesar Camargo Mariano.
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"Vale tudo" (1988) - Vendagem: 182.599 cópias (nacional); 1.443.154 (internacional). Apesar de ter a 2ª trilha internacional mais vendida até 1989 (a primeira foi "O Salvador da Pátria"), "Vale Tudo" ainda hoje é lembrada por suas canções brasileiras, principalmente "Faz Parte do Meu Show", de Cazuza, tema do casal Afonso (Cássio Gabus Mendes) e Solange (Lídia Brondi). "A canção foi uma escolha do autor da novela, Gilberto Braga", conta Villari. "Ele convenceu o produtor Max Pierre, que estava resistente por achar que a música não tinha vocação para se tornar um sucesso popular." Também é impossível desassociar a trama tão politizada de sua faixa-tema, "Brasil", também de Cazuza e eternizada por Gal Costa. Na trilha internacional, mais um hit absoluto: "Baby Can I Hold You", da então novata Tracy Chapman, que embalou o acidentado romance entre Raquel (Regina Duarte) e Ivan (Antônio Fagundes).
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"O Salvador da Pátria" (1989) - Vendagem: 605.459 cópias (nacional); 1.463.543 (internacional). Foi a trilha sonora nacional mais vendida dos anos 1980, atrás apenas de "Roque Santeiro". De fato, é impossível não relacionar a saga do ingênuo boia-fria Sassá Mutema (Lima Duarte) à chorosa balada "Lua e Flor", de Oswaldo Montenegro. Mas o disco também ajudou a consolidar a carreira de Marisa Monte, que tinha em "Bem que se Quis" a música mais tocada nas rádios naquele 1989. "Havia, então, a união de hits de vocação mais popular (Wando, Rosana, Oswaldo Montenegro) com uma MPB considerada mais sofisticada (Marisa Monte, Gilberto Gil, João Bosco)", define Villari. Já a trilha internacional tinha como carro-chefe a balada romântica "Lost in Your Eyes", da cantora teen Debbie Gibson, além de outros ídolos da FM, como Bon Jovi, Rick Astley, Phil Collins, Whitney Houston e Milli Vanilli.
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Colecionadores ficarão órfãos
Quer uma demonstração da força das trilhas? Entre em qualquer sebo ou loja de usados ou consulte qualquer coleção de discos menos viciada e tenha certeza de que encontrará pelo menos um destes discos abaixo.
Mas nem tudo é tão doce quanto o final de "Amor de Mãe", segundo os próprios colecionadores. As trilhas entraram em crise.
Fico triste pelo fim do formato físico. Mas, ultimamente, elas não vinham atingindo a qualidade e inovação das décadas de 90 e 2000. Ficaram repetitivas, sempre com músicas antigas, com arte gráfica pobre. E nem temos mais trilhas separadas por músicas nacionais e internacionais.
Andre Cahecchia, colecionador e pesquisador em teledramaturgia
Centavo 5
A cultura popular brasileira está sendo golpeada
Como já bem escreveu o amigo jornalista Sérgio Martins, as trilhas de novela são termômetro do sucesso e retrato dos costumes e dos estilos musicais consumidos pelo povo brasileiro.
Ao longo das décadas, foram trampolim para a MPB, emplacaram cantores e hits internacionais e brilharam ao levar exclusividade à dramaturgia, transformando-as no mais bem acabado produto da nossa cultura pop.
O quiz a seguir não me deixa mentir
Toda essa riqueza de e curadoria foram se diluindo aos poucos nos últimos anos, sem que o grande público percebesse, concomitantemente à erosão do mercado musical e à queda do consumo de mídia física nos últimos 15 anos.
O resultado desse processo corrosivo é a era em que vivemos. Uma infinidade de informação e artistas disponíveis movidos a algoritmos, com uma música cada vez mais indistinta e descartável, taos quais a maioria das telenovelas.
Coincidência? Prefiro acreditar que não. E, infelizmente, esse parece ser um caminho sem retorno à vista
Você tem pitacos, críticas ou só quer contar qual é sua trilha de novela favorita? Então escreva no campo dos comentários ou envie uma mensagem para mim no Instagram (@hrleo) ou Twitter (@hrleo_).
E até a próxima datilografada!
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