Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
O caso do disco da Blitz que veio riscado de fábrica e enganou muita gente
Há 40 anos, uma banda iniciante lançou seu célebre primeiro disco, considerado o pontapé inicial do rock dos anos 1980. Mas, para a surpresa geral, ele possuía faixas totalmente arranhadas, o que levantou dúvidas sobre um possível erro de fábrica ou uma ação direta do governo federal.
Mas na verdade era um protesto. Um maravilhoso protesto da Blitz com seu "As Aventuras da Blitz", um dos maiores sucessos daquela geração e que traz "Você não Soube me Amar" e "Mais uma de Amor".
em caso de desconfiança: sim, a capa é inspirada nos quadrinhos do X-Men.
Antes de prosseguirmos, um pouco de contexto: era 1982, três anos antes do ocaso da ditadura militar, e, apesar disso, uma coisa chamada DCDP (Departamento de Censura de Diversões Pública) ainda persistia nas instituições do país.
Desde a instauração pelos militares do Ato Institucional nº 5, 1968, que enrijeceu fortemente o regime, obras artísticas precisavam passar pelo crivo de agentes federais que decidiam o que era ou não "adequado" para a "moral e bons costumes" dos brasileiros.
E as duas últimas duas faixas do álbum, "Cruel Cruel Esquizofrenético Blues" e "Ela Quer Morar Comigo na Lua", acabaram sucumbindo ao "Big Brother" do sistema. O motivo? Como de praxe, ninguém sabia dizer ao certo.
Segundo o livro "As Aventuras da Blitz" (Ediouro, 2009) censores não explicitaram os "problemas" das letras, que falavam da maneira mais simples e descontraída possível sobre ser jovem em um país jovem.
Mas especula-se que
1) "Cruel Cruel" chamou a atenção por empregar a palavra "peru" de forma dúbia. "E some com a tua paz/Que se foi como aquela empregada radical/que você mandou embora numa cena feia/depois da ceia na noite de Natal/Só porque ela pegou no peru do seu marido", diz a letra.
E, em outro trecho, há ainda a inclusão de um palavrão explícito: "Não agora não dá mais, ah puta que pariu".
2) Já em "Ela Quer Morar Comigo na Lua" Evandro Mesquita e Ricardo Barreto usavam uma frase ameaçadora: "Ô, ela diz que eu ando bundando".
E basicamente foi isso. Carimbo de censura no documento.
Mas havia um impasse
Como a data de lançamento definida pela gravadora EMI vinha se aproximando no mês setembro, não havia tempo hábil para tentar reverter a decisão na Justiça. O primeiro lote do LP já havia sido encomendado na fábrica.
Foi quando o produtor Mariozinho Rocha veio com a proposta: "E se gente riscasse manualmente as faixas censuradas na matriz do disco, como um manifesto contra a caretice do governo?".
"Foi uma resposta aos absurdos da censura, o feitiço virou contra o feiticeiro"
disse ele no documentário "Blitz, o Filme" (2019)
Vandalizando a própria obra com pregos, a anárquica Blitz queria explicitar o quão fútil e paranoica era a intervenção de um governo que em 1982 ainda se incumbia de podar a liberdade de expressão do brasileiro.
Tal "desacato", é importante frisar, só foi possível ali, sem represálias, devido ao fato de o Brasil já atravessar um período de abertura política. Dezenas de outros artistas já haviam sido censurados anteriormente e ficado de mãos atadas.
Voltando ao LP: os títulos de "Cruel Cruel Esquizofrenético Blues" e "Ela Quer Morar Comigo na Lua" foram apresentados cobertos no selo e envelope interno do álbum, que explicava a situação em tipografia de adesivo.
"Por terem sido vetadas pela censura (D.C.P.D.), as últimas faixas do lado B foram intencionalmente inutilizadas", escrevia a banda. Já a versão lançada em fita K7, com expectativa de vendas muitíssimo inferior, apenas ignorava a censura, como se nada houvesse acontecido.
Eis o "selo da vergonha" indicando a censura
Mesmo com os avisos, houve quem não entendesse o recado e devolvesse o LP por defeito de fabricação. Outros, mais desavisados ainda, reclamavam que haviam quebrado a agulha tentando ouvir faixas riscadas. E havia os que simplesmente imaginam que os próprios militares haviam danificado o vinil a próprio punho.
A gente sofreu uma porrada da ditadura e a censura na época era muito braba. [...] Mas aí, a gente teve a ideia de rabiscar a matriz do disco para passar aos nossos ouvintes a agressão que a gente sofreu
Evandro Mesquita no antigo programa Discoteca MTV
Estima-se que as primeiras 30 mil das 100 mil cópias vendidas foram produzidas dessa forma insólita, o que transformou a prensagem original de "As Aventuras da Blitz" em um item ainda mais especial e colecionável.
Em tempo: as duas faixas censuradas não permaneceram inéditas por muito tempo. Já em 1983 foram lançadas em um compacto especial, que em Portugal chegou a acompanhar o disco. Anos depois, elas voltaram ao mundo em versão CD.
Curiosidade: antes do lançamento oficial e da intimidação da DCDP, algumas cópias saíram de fábrica em versão sem censura, incluindo as duas músicas "proibidonas".
Segundo o site Discogs, esses discos, raríssimos, foram destruídos pela gravadora e jamais chegaram ao mercado na época, mas algumas cópias sobreviveram e hoje podem valer pequenas fortunas.
Essa versão está cadastrada no site, mas sem nenhum exemplar à venda. Se você encontrar algum deles por aí, perdido ou caído em um sebo ou coleção, mande uma foto para a publicação deste colunista. Se você quiser enviar o disco em si, melhor ainda.
Que conversar ou falar de outra coisa com a coluna? Então mande uma mensagem para mim nos comentários ou via Instagram (@hrleo) e Twitter (@hrleo_). Quer ler mais textos do colunista? Clique aqui.
E até a próxima datilografada!
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.