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MoFi mente sobre procedência de discos, revolta clientes e vive maior crise
No meio colecionista, especialmente entre o consumidor audiófilo, aquele que busca o melhor e mais puro som possível, o nome Mobile Fidelity é sagrado. Desde os anos 1970, o selo americano lidera o segmento produzindo alguns dos melhores e mais caros vinis do mundo.
A razão de tanto sucesso é seu processo de produção "artesanal", em que os discos são feitos diretamente das fitas masters originais, sem nenhuma interferência digital. Mas isso era o que o mundo sabia até agora.
Após uma denúncia de um youtuber americano, o lojista e colecionador Mike Esposito, que virou uma longa reportagem publicada no jornal Washington Post no último dia 5 de agosto, a MoFi reconheceu o uso de fontes digitais em seus discos.
É assim pelo menos desde 2011, quando o processo de masterização —o acabamento recebido pelo áudio antes de ir para o vinil— passou a ser feito a partir de arquivos de computador. E essa notícia caiu como um LP arranhado na comunidade audiófila.
Mas por quê?
Como bem observou o repórter Geoff Edgers, do Post, para quem consome discos da Mobile Fidelity, procedência é tudo. Usar o digital é considerado ato quase profano. Esconder esse uso, então, como a MoFi fez, é o maior pecado que alguém poderia cometer.
E essa revelação abriu uma crise sem precedentes na empresa, que ainda estuda a melhor forma de reduzir danos. Descrições sobre a fonte sonora dos discos estão sendo corrigidas no site e materiais de divulgação. Especialistas já projetam quedas sensíveis no volume de encomendas e margens de lucro.
Mas como a companhia foi desmascarada publicamente? A história é curiosa. E um exemplo de como não se gerir crise.
Em um vídeo postado no dia 14 de julho, Mike Esposito, proprietário da loja 'In' Groove na cidade Phoenix, afirmou ter fontes "bastante confiáveis" que juraram que a Mobile Fidelity empregava arquivos digitais em suas famosas reedições de clássicos da música pop.
Não era exatamente uma novidade. Youtubers e membros de fóruns de discussão já insinuavam isso há tempos. E os questionamentos foram a pino depois do anúncio, no início deste ano, do relançamento do álbum "Thriller", de Michael Jackson, com tiragem de 40 mil cópias dentro da série One-Step. Normalmente, ela gira em torno de 3.500 e 7.500.
Segundo o Washington Post, nessa série, a fita master precisa ser executada dezenas de vezes durante a produção do vinil, o que resultaria em um alto desgaste do material magnético, o que dificilmente seria autorizado pela Sony Music.
Foi então que a MoFi achou por bem colocar panos quentes na situação. John Wood, vice-presidente de desenvolvimento de produtos da empresa, agiu rápido e convidou Esposito para uma visita na sede da empresa na Califórnia.
E lá, na base do jeitinho, ele conseguiu autorização para entrevistar três engenheiros de masterização que acabaram entregando o segredo de ouro, o que rendeu mais um vídeo em seu canal. O estrago estava feito.
Dias depois, a Mobily Fidelity colocou fim aos rumores admitindo ao jornal, após anos de marketing agressivo, o uso do arquivo digital DSD (Direct Stream Digital) na masterização do disco "I Left My Heart in San Francisco", de Tony Bennett, relançado em 2011. Ele teria sido o primeiro. Com o tempo, a prática se tornou padrão.
Explica melhor: quando a MoFi prensa o disco em fábrica, o conteúdo da fita master é cedido pela gravadora e transferido para um computador, que é manipulado por um engenheiro responsável por editar as frequências sonoras. Ele manipula detalhes técnicos na sonoridade e só aí o áudio é passado para a máquina que corta o acetato que serve de base para o vinil.
Essa é praxe da esmagadora maioria das empresas que produzem vinis modernos. Mas a MoFi insistia em negar que esse procedimento acontecia em seus caríssimos e incensados discos "diretos das masters", que na série One-Step custam US$ 120 dólares (mais de R$ 600) em box de vinil duplo.
Em meio a uma minoria de vozes defensoras, houve quem cancelasse compras, como o youtuber JC, do canal "The Flip Side", quem previsse o fim da Mobile Fidelity, como Michael Ludwigs, do 45 RPM Audiophile, ou quem simplesmente se visse no papel de palhaço, como o youtuber Dale Clarke, do Arc HiFi.
Diante de uma violenta bola de neve, o diretor de marketing Syd Schwartz foi obrigado a se retratar:
A Mobile Fidelity faz ótimos discos. Discos com a melhor sonoridade que você pode comprar. Houve escolhas feitas ao longo dos anos e escolhas no marketing que levaram à confusão, raiva e muitas perguntas. Narrativas que se propagavam há algum tempo que eram falsas ou mitos. Erramos em não ter abordado isso antes
alegou ao Washington Post
Uma das "narrativas" a que ele se refere se encontrava dentro da própria embalagem dos álbuns vendidos: um folheto que detalha o passo a passo da linha produção, que possui menos etapas que o tradicional, o que garante mais fidelidade ao som de estúdio. Mas ele não fazia qualquer menção a interferência digital.
Há diferenças entre analógico e digital, e não existe claramente um superior ao outro. Vai de cada ouvido, e já escrevi sobre isto aqui. Mas então o que há de errado em empregar o segundo?
E o fato é que, hoje, com internet em alta velocidade e equipamentos de qualidade, gravações digitais podem ser realizadas sem perdas, "enganando" até os ouvintes mais treinados. Um exemplo: Ed Motta. O cantor e colecionador, dono de uma escuta acurada e detalhista, que é cliente da MoFi.
"O princípio da excelência da MoFi se aproxima do de um filme dos anos 40 convertido para 4K. Para ser digitalizado, vai haver correção de imperfeições técnicas, não estéticas. Eu comprei recentemente o "Something/Anything?", disco do Todd Rundgren, e ele está soando melhor que o original. Há uma série de vantagens na junção do digital e analógico", advoga à coluna o cantor.
Christian Pruks, da revista Clube do Áudio, concorda com Ed. Ele diz que os engravatados da MoFi pecaram principalmente por omissão, apesar de o serviço de atendimento ao consumidor ter mentido para muitos clientes que perguntavam sobre a fonte dos áudios. Mas, em um ponto, a grita audiófila teria razão de ser, e não seria na mistura de fontes sonoras diferentes.
"Existe o fato de que, se estão usando master digital, ainda que transferida de masters analógicas, então seus custos são menores. Portanto, o preço dos vinis deles tem que baixar. Até porque não se pode mais cobrar tão caro por um produto que, intrinsecamente, não é mais tão especial como foi propagandeado por anos", escreveu ele.
Controvérsias à parte, uma coisa não mudou para a maior parte dos colecionadores: a MoFi continua produzindo excelentes discos, de alto padrão sonoro, superiores à média do mercado. Além de investir em tecnologia e maquinário. Uma nova fábrica está sendo aberta na Califórnia para atender a alta demanda que explodiu na pandemia.
Como indagou Pruks, estariam sendo os compradores puristas demais? Ou há méritos nas reclamações? Teria o mundo audiófilo entrado em sua derradeira crise existencial? Indo além: até quando o marketing baseado em mentiras vai continuar existindo? Empresas não deveriam ser transparentes e agir com um mínimo de responsabilidade?
Esse é um assunto que suscita muitas perguntas e está longe de se encerrar neste espaço. E sua opinião é importante para a coluna. Deixe-a nos comentários ou mande uma mensagem diretamente para mim no Instagram (@hrleo) ou Twitter (@hrleo_). Quer ler mais textos? Clique aqui.
E até a próxima datilografada!
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