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Leonardo Rodrigues

REPORTAGEM

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O dia em que Zappa 'inventou' o streaming que você usa, mas ninguém ligou

Frank Zappa - Jerry Schatzberg
Frank Zappa
Imagem: Jerry Schatzberg

Colunista do UOL

15/09/2022 14h53

Existe o que classificamos de clarividência, de perspicácia, inteligência. E existe o que chamamos de Frank Zappa (1940-1993), gênio cuja visão aguçada, sagaz e iconoclasta se expandia por todos os poros e muito além da música.

Um exemplo episódico: o compositor, cantor e guitarrista é visto por muitos como o "inventor do streaming" —ou pelo menos um pai teórico.

No início dos anos 1980, Zappa, com seu humor anárquico, anteviu as mudanças na indústria fonográfica e, de tabela, a forma como consumimos entretenimento. A proposta está registrada em um livro de memórias, a autobiografia "The Real Frank Zappa Book" (1989), coassinada por Peter Occhiofrosso.

Esta é uma coluna sobre mídia física, e por que estamos falando do "oposto" dela? Simples. Nada mais Frank Zappa do que isso.

Mas antes vamos a um pouco de contexto

Uma das mais completas e enigmáticas figuras da música pop, Zappa também era um homem de negócios. Chefe da própria gravadora, a Zappa Records, ele sabia dos custos envolvidos na gravação e distribuição de música e queria mudá-los.

Frank Zappa - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Era um entusiasta da tecnologia —mais do que de seres humanos— sem fetiches pelos suportes musicais existentes. Tinha um redemoinho de ideias na cabeça, que rotineiramente eram enviadas a executivos de gravadoras e empresas de hardware.

Uma delas, apresentada provavelmente entre 1982 e 1983, Zappa se queixa do preço dos CD players que vinham sendo introduzidos no mercado. Um Sony CDP-101 saia nos EUA por proibitivos US$ 730 dólares, o que para ele arruinava chances do formato se popularizar.

A crítica pode soar datada hoje em dia. Mas Zappa tinha razão. E por isso apresentou o que chamava de "proposta para um sistema de substituição do merchandising de discos fonográficos".

"A comercialização de discos como existe hoje é um processo estúpido que se preocupa essencialmente com a movimentação de pedaços de plástico, envoltos em pedaços de papelão, de um local para outro", escreve ele, mordaz, no capítulo "Failure" (Falha), que trazia ideias recusadas por "caras de terno do mundo real". Zappa não tinha pudor de exibir seus insucessos.

A ideia

O intuito era cortar custos de envio e dos processos de controle de qualidade dos LPs, problemas parcialmente resolvidos com o recém-chegado CD. Mas o investimento na fabricação e distribuição eram uma dor de cabeça para Zappa.

E havia outras preocupações: a pirataria, que crescia com o advento das fitas K7, e o desperdício artístico de gravadoras que se preocupavam mais em lançar novos artistas e lançar modas do que explorar seus já volumosos catálogos.

Foi aí que o sino tocou. E se houvesse um jeito de colocar músicas "em um local de processamento central para tê-las acessíveis por telefone ou TV a cabo, compatíveis com eletrodomésticos" que já existiam?

A epifania zappiana foi compartilhada com executivos. Mas a história conta que, na época, ninguém se animou com a ideia.

Antes de o CD se popularizar e (muito antes) de a internet invadir lares, Frank Zappa imaginou um servidor cheio de músicas prontas para serem baixadas, como os atuais. E isso mudaria os hábitos do mundo —como de fato mudou.

Frank Zappa - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Mas o melhor veio depois

A proposta ainda previa um modelo de assinatura, com pagamentos de royalties e cobrança ao consumidor "incorporada ao software do sistema", além de "categorias de interesse", semelhantes as oferecidas por plataformas atuais.

Astutamente, o exercício de futurologia sugeria exibir "arte da capa, incluindo letras de músicas e dados técnicos, enquanto a transmissão estivesse em andamento, dando ao projeto um toque eletrônico".

Zappa foi certeiro ao pensar em "fornecer material em tal quantidade a um custo reduzido poderia diminuir o desejo de duplicá-lo e armazená-lo, já que estaria disponível a qualquer hora do dia ou da noite", ajudando no combater à pirataria, que teria um longo caminho pela frente.

"A maioria dos dispositivos de hardware já estão, enquanto você lê isso, disponíveis nas prateleiras de loja, apenas esperando para serem conectados uns aos outros para acabar com a indústria fonográfica como a conhecemos agora", profetizou.

Mas ele inventou mesmo o streaming?

Frank Zappa provavelmente não foi o primeiro a propor algo que se converteria na semente do streaming. Redes de computadores já existiam. Havia milhões de vislumbres. Mas nada disso muda o fato de ele ter visto o futuro, o que é impressionante.

Pegando emprestado o conceito de "descoberta múltipla" das ciências exatas: às vezes uma ideia é tão boa que ela simplesmente se torna inevitável. Mas Zappa estava lá, duas décadas à frente de YouTube e Spotify cogitarem existir.

A revolução promovida pela internet nocauteou a mídia física e virou de cabeça para baixo a indústria e seus músicos? Sim. Mas, como Frank Zappa pressagiou, as peças já estavam prontas no tabuleiro em 1982. Era apenas uma questão de tempo. De alguém ligar os pontos.

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E até a próxima datilografada!