Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Festa sem álcool na Fazenda é um jeito de culpar vítima pelo abuso de novo
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Essa semana depois de episódio de violência que aconteceu na Fazenda envolvendo Dayane Melo e Nego do Borel, me peguei pensando na quantidade de vezes que vi amigas embriagadas entrando em quartos com amigos ou conhecidos para transar.
Peraí, estou contando isso errado: eu me peguei pensando na quantidade de vezes em que fui cúmplice de estupros, ao ver amigas que não tinham condições de discernir o que queriam e foram induzidas por caras que eu julgava legais. Eu entendia que mulheres, por estarem embriagadas, pediam para isso acontecer.
Lá se vão 20 anos.
Curioso que a produção do programa resolveu tirar o álcool da festa ontem. Na semana passada, Dayane estava bêbada e não se lembra do que aconteceu. Tirar o álcool do evento uma semana depois da violência que aconteceu no último sábado dá a entender para o público que Dayane era culpada: afinal, se ela não estivesse bêbada, teria condições físicas e psíquicas de impedir que o violentador a atacasse.
Não foi o álcool que abusou da garota, foi um homem. E deveria ser esse homem o responsável por suas atitudes violentas, independentemente do estado etílico da garota.
Dizer isso parece tão óbvio, mas talvez não seja. Vamos lá, uma festa sem álcool. O que a emissora quer dizer com isso? Os homens lá confinados não podem ser responsáveis pelos próprios atos? Precisam que as mulheres estejam sóbrias para ter a força e o discernimento de impedi-los de cometer algum crime? O estuprador é sempre o culpado.
E se todos estivessem sóbrios?
Quando eu tinha uns 19 anos, estava com muitos amigos em uma casa de praia. Tinha trocado uns beijinhos com um dos garotos, que me convidou para tomar um sorvete na tarde do dia seguinte. Achei o programa meio romântico demais, mas entrei no carro dele. Sóbria, de tarde. Ele parou em frente a um prédio com um matagal na rua. Disse que era a casa de um amigo e precisava pegar algo. Me chamou para subir. Eu fiquei com medo do lugar ermo e decidi subir. Só percebi aonde tinha me metido quando entrei no lugar — era um apartamento vazio.
Quando voltei para a casa e esse rapaz saiu, cantando pneus, eu não contei para ninguém o que havia acontecido. Achava que a culpa era minha por tê-lo beijado, por ter aceitado o sorvete, por ter entrado no carro, por ter subido no prédio, por não ter me defendido quando percebi o que estava acontecendo e fiquei paralisada.
Só uns 10 anos depois, conversando com um amigo com quem dividia apartamento, que contei essa história. Ele disse: "Lu, você foi estuprada nesse dia". E então me dei conta. Não tem uma gota de álcool nesse relato. A culpa nunca foi minha.
Ser mulher é um acúmulo de culpas que não são nossas
A Fazenda toma a atitude na intenção de proteger os homens de caírem nessa tentação e serem julgados posteriormente pelas redes sociais. Está errado. Dayane tinha todo o direito de ficar bêbada o quanto queria e mesmo assim não ser violentada.
As mulheres não são apenas responsabilizadas pelos estupros que sofrem, mas também pela sobriedade que vai proteger a reputação dos homens que as cercam.
É um sem-fim de insanidades.
O que eu gostaria mesmo era de voltar no tempo para as festas da faculdade. Impedir minhas amigas de entrarem naqueles quartos, naqueles carros, naqueles cantos com aqueles caras que eu achava legais. Fui cúmplice.
Queria também nunca ter ido tomar um sorvete naquele dia na praia. Mas o que eu queria mesmo é que nenhum desses caras tivesse nos violentado.
Record também é cúmplice da violência ao tirar o álcool da festa como se fosse essa a solução para a violência. O que eles ganham assim? A segurança de não ter um crime televisionado em rede nacional como na semana passada. Protegem os homens para assim garantir reputação junto aos patrocinadores. O patriarcado sempre ganha.
E o que a gente ganha com isso? Nada. Nos episódios como esse, mulher nunca ganha nada.
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