Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"Eu Nunca", da Netflix, conforta quem passa a vida acompanhado pelo luto
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Há uma expressão bonita no filme "Solo Diós Sabe", com a brasileira Alice Braga e o ator mexicano Diego Luna no elenco: a irmandade dos órfãos. Os protagonistas descrevem pessoas que perderam o pai ou a mãe e têm uma cumplicidade e afeto inerentes. Faz sentido e não é de hoje que a indústria do cinema abusa do recurso com seus protagonistas: de Bambi ao Rei Leão, a gente sente empatia pelos órfãos desde sempre (já falei disso aqui). É assim com a controversa personagem Devi, de "Eu Nunca", cuja terceira temporada estreou esse mês na Netflix.
Devi tem aquelas características dos adolescentes que a gente até evitar falar alto de medo de nossos filhos escutarem e copiarem. É egoísta, mete os pés pelas mãos, trai amigos e não se importa muito de magoar as pessoas. Um desastre. A garota usa sempre a desculpa de que estava sofrendo para justificar atitudes nada louváveis, como espalhar na escola que uma amiga é bulímica, por exemplo. Mas sendo estrelada por tal anti-heroina, por que a série é sucesso há três anos?
A estudante nerd indiana é órfã. Logo no primeiro episódio da primeira temporada, o pai morreu de um ataque cardíaco na plateia de uma apresentação da orquestra onde ela toca harpa. E ela usa essa desculpa interna (o sofrimento máximo) para justificar para si as mentiras que conta ou as sacanagens que faz com quem a ama.
É claro que, aos 16 anos, o sonho de ser popular no colégio ou namorar o garoto gato pode se tapar muito bem o Sol com a peneira quando a questão que na verdade move seus dias é sentir falta do pai do momento em que acorda até o momento em que vai dormir. Devi vai tocando assim e até que disfarça bem (para os outros). Mas não dá para viver assim para sempre.
Senta que lá vem spoiler
Se você ainda não viu a terceira temporada, a partir daqui dou alguns spoilers.
Devi tem um insight importante quando um dos amigos de seu namorado mexe nos pertences de seu pai e encontra uma raquete que era muito especial para ele. Ao chorar com medo de perder o objeto, ela percebe que pode ter as coisas que eram importantes para ele ao alcance dos olhos, enfeitando a parede do quarto. A ausência da figura paterna fica ali materializada em um objeto que não causa mais tristeza e, sim, a memória de um carinho bom de sentir.
Seu luto não vai deixar de acompanhá-la, mas, ela descobre, agora vem em ondas. Dá para ser feliz nos intervalos.
E, quando chegar a tristeza, não tem jeito: é sentar na cama borrando um pouco a maquiagem de tanto chorar. E esperar passar.
No decorrer da terceira temporada, Devi é julgada por algumas pessoas por ser problemática. O namorado termina a relação implorando que ela trabalhe a autoestima. A nova sogra dá um jeito de tirá-la da jogada porque a julga complicada demais e deseja para o filho coisa melhor.
Problemática? Não é bem isso
Ela percebe que sua perda construiu uma personalidade com buracos e que é justamente isso que faz dela exatamente o que ela é. Nesse momento, após sequência de atitudes condenáveis, dá até para vê-la como alguém prestes a amadurecer.
"O que me fez ser tão intensa?", ela pergunta. O público sente forte a irmandade dos órfãos nesse momento. E tem outro jeito de ser quando você passa a vida inteira tentando tapar buracos para sobreviver?
Como irmã de orfandade, posso dizer que nunca fica mais fácil, Devi. Mas se torna possível. E aí não é a morte de alguém guiando seus passos — é você mesma com os buracos deixados por essa morte. Reconhecer essas lacunas e tais intensidades é a receita para uma maturidade menos dolorida que o caminho que nos leva até lá.
E aproveitar a beleza da identificação: tudo fica um pouco mais fácil quando a gente olha para o lado e encontra a cumplicidade no olhar de quem sabe exatamente o que estamos sentindo. A gente consegue. Devi também. Sigamos.
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