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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pantanal: Zé Leôncio lembra que, apesar do carisma, Tenório é um abusador

Maria Bruaca (Isabel Teixeira) e Tenório (Murilo Benício), em Pantanal: agora ela sabe o que é violência - Reprodução
Maria Bruaca (Isabel Teixeira) e Tenório (Murilo Benício), em Pantanal: agora ela sabe o que é violência Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

24/08/2022 04h00

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Desde o início da novela Pantanal, Tenório (Murilo Benício) causa um estranho fascínio. Muito se deve ao próprio ator, que interpreta um homem de caráter duvidoso, porém divertido. Dá para passar um pano para as inúmeras violências cometidas pelo fazendeiro graças ao carisma de Murilo. Até que Zé Leôncio (Marcos Palmeira) entra na jogada e mostra para Maria Bruaca (Isabel Teixeira) e para o público que aquele cara é, sim, um agressor.

Nunca é demais lembrar: um homem abusador pode ser divertido, pode ser carinhoso, pode ser cuidadoso com os filhos e pode até estar sofrendo por qualquer motivo. Todos os atributos positivos que o humanizam podem ofuscar um pouco o ponto central de sua personalidade, especialmente para a esposa que sofre violência psicológica. Colocar um apelido depreciativo como bruaca na mulher já é agressão.

Maria não sabia disso, nem cogitava que a justiça poderia protegê-la legalmente das maldades do marido, garantindo seus direitos. O vizinho procura ajudá-la chamando uma advogada (Luciana Borghi) e faz questão de lembrar que a violência doméstica não se trata apenas de "bordoadas". "Não é porque a senhora nunca apanhou dele que a senhora não foi vítima", ele diz. A advogada completa que, além da física, existem outros tipos de violência: moral, psicológica e até mesmo patrimonial. Portanto, apesar de ter sido enxotada pelo marido adúltero da casa onde, ela entende que tem direitos também sobre aquela propriedade e que pode brigar por ela.

Não foi sempre assim

Em 1990, na primeira versão de Pantanal, Tenório (então vivido por Antonio Petrin) não tinha todo esse apelo simpático e era um vilão odiado pelo público. A solução encontrada por Zé Leôncio (Claudio Marzo) na época foi chamar um advogado que cuidasse do divórcio litigioso e garantisse que a mulher tivesse direito às terras que o marido só conquistou após herdar do sogro — ou seja, as fazendas sempre foram dela. "Uma mulher que corneou o marido depois de ter sido corneada a vida inteira ainda tem direito a parte dela na partilha dos bens do casal?", pergunta Zé para o advogado Dr. Arnour (Sergio Mamberti). A violência não é citada em nenhum momento da conversa.

A lei Maria da Penha só surgiu em 2006, 16 anos depois da primeria versão ir ao ar na Manchete.

Na versão original, a Maria interpretada por Ângela Leal não tinha nenhum respaldo legal para o abuso psicológico que sofria. A violência do homem naquela época se resolvia com mais violência — tanto que a história acabou de fato em tragédia.

(A partir daqui, pode haver spoilers sobre a primeira versão da novela, em 1990)

Quando o primeiro Tenório pega Maria e Alcides (vivido por Ângelo Antonio), ambos chegam a implorar pela própria morte, como se essa fosse a única clemência possível. Maria argumenta que vai devolver as terras dele para que eles os poupe. Ninguém fala em direitos, muito menos em leis.

Apesar de ter a torcida do público, o casal Maria e Alcides era adúltero. Dentro da "lei da honra" e da lógica própria e enlouquecida de Tenório, a única coisa que importava era humilhá-los. Possuir à força a mulher que um dia foi sua também era, em sua cabeça, seu direito e uma maneira de garantir continuar sendo "homem".

Antes enganada em segredo, hoje com aliados

Há uma cena na novela da Machete em que, em conversa com Guta (Luciene Adami), Zuleika (a outra mulher de Tenório, vivida por Rosamaria Murtinho) afirma que "o pior não é ser enganada, é saber que está sendo enganada". E garante que se não soubesse que o marido tinha outra esposa e descobrisse a traição por acaso, fingiria não saber de nada para poder preservar a vida que levava.

As mulheres da fazenda, no entanto, incentivam Maria a entrar com o processo do divórcio. Ela afirma que sente medo, mas todas rebatem: "Vai ter medo de que, dona Maria, mais medo do que a senhora passava naquela casa?". Ela toma coragem e diz que irá em frente. A cena se repete no remake. Nesse 2022, o Zé Leôncio atual de Marcos Palmeira afirma que protegerá Maria: "A senhora tem mais armas e aliados do que imagina".

Nos 32 anos que separam uma versão da outra, nós mulheres ganhamos apoio dos homens. Aprendemos que o machismo tenta nos imputar culpa quando não passamos de vítimas. Mas vencemos? Não, estamos muito longe disso.

A mulher segue com medo de denunciar os erros do fazendeiro com quem foi casada. A advogada até explica que uma medida protetiva pode deixá-la mais segura, mas ela duvida: "Um documento não vai evitar que ele me encontre nesse mato e faça alguma coisa comigo". A realidade é a mesma de muitas que, nos dias atuais, apesar do respaldo da lei, têm medo de denunciar os Tenórios que andam por aí. Dá para entender.

Maria ainda carrega culpas: disparou um tiro dentro de casa contra o marido e o traiu ao ficar com Alcides (Juliano Cazarré) e Levi (Leandro Lima). A advogada garante que esses deslizes não tiram seus direitos, mas mesmo assim ela fica desconfiada. As amigas na fazenda, no entanto, repetem que a apoiarão de qualquer maneira. Nos tempos atuais, a advogada frisa que "palavras, ofensas ou a imposição, seja através da força de ameaças, do controle financeiro ou da forma que for, se configuram como casos de violência doméstica".

Uma Maria que muda o rumo das outras

As marias de Ângela Leal, em 1990, e a contemporânea de Isabel Teixeira são a mesma pessoa. Mulheres traídas em ambiente machista e violento que tentam refazer suas vidas após uma dor profunda. Mas há outra Maria entre elas, a da Penha, e isso mudou o rumo da personagem depois de algumas décadas.

Que sairão machucadas dessa experiência é um fato. Mas quantas outras Marias sofrerão menos após falarmos disso em rede nacional?

Enquanto a cultura do machismo não for mudada, é difícil garantir a segurança da mulher. O que podemos dizer é que caminhamos um pouco para melhorar esse cenário. O suficiente para que Zés Leôncios abracem também a causa — e quanto mais gente lutar junto, menos difícil fica.

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