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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A dor de Bethânia por Gal traduz a supresa de perder quem parecia eterna

Gal Costa mostrando sua cara há décadas: como fica o Brasil sem ela? - Adriano Vizoni/Instagram @galcosta
Gal Costa mostrando sua cara há décadas: como fica o Brasil sem ela? Imagem: Adriano Vizoni/Instagram @galcosta

Colunista do UOL

10/11/2022 04h00

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A gente sabe que as pessoas não são eternas. Mortes de idosos costumam ser mais fáceis de aceitar do que a incredulidade que nos toma quando perdemos alguém jovem demais. Mas quando acontece uma despedida como houve nessa quarta (9) a de Gal Costa, aos 77 anos, todos são pegos por profundo pesar.

Maria Bethânia traduz o sentimento ao aparecer em vídeo no seu Instagram lamentando a morte da parceira de vida. Acostumados que estamos com a força de sua voz, a de Bethânia, a contundência de suas palavras, é triste notar que lhe falta o que dizer. A ausência de outra voz, a de Gal, que parecia eterna — e de certa forma é — quase cala a todos.

A amiga de tantas décadas se vai e deixa a cantora cabisbaixa, em choque, como ela diz: "Nunca pensei em um dia chegar aqui para falar para vocês sobre a dor de perder Gal. Triste demais, difícil demais". O Brasil concorda.

Gal Costa ficou doente de uma maneira discreta, como tudo o que fez na vida particular. Na sua arte, entretanto, era superlativa. Pedia que o Brasil mostrasse a cara com revolta nos anos 80, na escolha cuidadosa de um repertório que sempre falasse por si. Jorrou o leite mau na cara dos caretas na televisão, em melodia. Abriu a perna nas fotos, não alisou os cabelos como ditavam as convenções. Fez o que quis. E inspirou que muita gente fizesse o mesmo.

"Mas a vida continua..."

Há um vídeo encantador de Gal na plateia de um show de Jorge Ben Jor. O diálogo entre os dois — um no palco e outro no auditório — é terno:

- Gal, tá a fim de cantar aqui com a gente?

- É?

- É, vem aqui dar uma canja.

- Eu vou.

Ela responde meio displicente, como quem diz: se é o que você está pedindo, agora aguenta. Sorrisão, batonzão, uma calça larga estampada, no momento seguinte Gal Costa já está com o microfone na mão para cantar "Que pena". E poucos versos depois, de testa colada com Jorge Ben, faz uma das apresentações ao vivo mais cheias de tesão da MPB. O vídeo dura quatro minutos e é puro carnaval, como diz o cantor ao microfone. Gal responde: "Graças a Deus". Exala sexo, não no real sentido da palavra. Mas naquele vuco-vuco que dois artistas no palco podem fazer dentro da gente, que consome arte.

Num dos DVDS de Chico Buarque, "Meu caro amigo", lançado no começo dos anos 2000, há um vídeo em que Gal, Djavan e o próprio Chico cantam a sensacional "Nuvem Negra". Eles começam a cena rindo, não fica claro do que, mas ela diz que Chico parece um menino travesso. Gargalham os três. Em poucos segundos, nos primeiros acordes, entra a voz de Gal dizendo que "não adianta me ver sorrir, espelho meu". É outra mulher, a artista, que sente profundamente cada palavra que canta em uma das letras mais bonitas de resignação da tristeza. Ela sabe o que Djavan queria dizer quando escreveu isso, ela entende a nuvem negra. Artista.

Por aqui, a gente pede para passar a nuvem negra, largar o dia, levar o mal que nos arrasou para que não faça sofrer mais ninguém. Mas tem dor que não sabe parar de crescer e doer. Maria Bethânia sabe disso e fala que chora com o Brasil todo. Tá difícil ser a gente sem reclamar de tudo.

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