Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Porchat, só defende piada violenta quem não tem medo de apanhar
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Poxa, Fabio, é claro que a gente gosta de você. Você é um dos criadores do Porta dos Fundos, um programa de humor que revolucionou a internet. Tem noção disso? O humor do Porta — crítico, surpreendente, moderno — mexeu com o jeito de fazer comunicação no Brasil. Você e sua turma são revolucionários. Por isso, quando a gente vê os rostos de vocês por aí, na TV, na internet, no palco, a gente para para ver.
A gente também para para ler o que diz, Fabio, porque você é um cara que nos conquistou. Seu rosto e sua voz chancelam algo que está validado. É possível que você erre? Sim, claro. Todo mundo erra. Mas parte-se do pressuposto que você pensa no outro. Você é o cara que ouve histórias de pessoas na GNT. Você é o cara que dividiu um estúdio com um dos caras que mais pensa antes de falar no Brasil, o Emicida. Com um estudioso como Francisco Bosco e com João Vicente, que tem uma vontade danada de aprender. Eu tinha certeza de que você sabia olhar pra gente com empatia, porque, para mim, suas credenciais vinham antes do seu nome.
Mas, claro, o humor tem suas escorregadas. Lembra daquele dia, em que você fez piada com a GKay? Então, não teve nada demais. Piada de nicho profissional, a gente faz aquela autocrítica e, com jogo de cintura, até ri junto. GKay não conseguiu, ficou ofendida. Levou como crítica pessoal. Acontece, segue o jogo. É pensar na próxima vez se a piada vale o constrangimento que virá a seguir. Se o riso provocado será de manada. Se vale a pena, enfim. Você sabe do que eu estou falando.
Já te ouvi fazer piada do fato de o pessoal fazer piada achando que você era gay. Não acho muito engraçado, porque ser gay não é uma esquete dos Trapalhões mais. Sabe como é, 2023 e tal. Mas entendo que rir, ali, seja seu jeito de escapar de uma brincadeirinha besta. Você faz piada consigo mesmo e jamais ofenderia uma minoria, certo? Estratégia. Porém, é preciso ter em mente que nada vai acontecer com você por conta dessa piada. Porque você é um homem hétero. É claro que isso não te ofende. Você não corre o risco de apanhar na rua por estar de mão dada com um homem, já que não é homossexual.
Mas tem gente, Fabio, nós sabemos, que apanha. Que morre. Tem gente gorda que é violentada verbalmente todo dia. Tem mulher que sofre ameaças dentro de casa, do homem com quem casou. Que é espancada por ele.
E tem gente preta que não arruma emprego por ser preta, que apanha da polícia, que é assassinada. Isso nem eu, nem você jamais saberemos como é, com as peles brancas que temos. É por isso que nos cabe o antirracismo. Ser antirracista é combater o racismo todo dia, venha na forma que vier.
O humorista que você defendeu — e depois desdefendeu — faz piada com isso. E é fácil dizer que se não gosta da piada é só não consumir, claro. Eu não gosto de gente rindo de quem diz que bateria, espancaria, daria uma lição com uma surra em uma mulher, por isso nem escuto esse tipo de colocação num stand up. Mas o problema não é detestar esse tipo de manifestação de ode ao crime. O problema, Fabio, é ter quem goste.
E a gente sabe que tem, infelizmente. Vivemos em uma sociedade doente. No bar, homens se gabam de terem colocado a mulher em seu lugar. Claro, você não faz isso, nem jamais faria humor disso. Mas tem gente que assiste a esse tipo de show e se sente validado de alguma forma.
Imagina só, Fabio, que a liberdade de expressão para quem se vale da violência para fazer humor legitima a própria violência.
É claro que você, homem branco, hétero e bem-sucedido, está defendendo o seu negócio. Seria péssimo se a Justiça bloqueasse uma piada que você acha ótima? Mas se ela contiver violência, incitar crimes, naturalizar comportamentos abusivos... sinto dizer que ela realmente precisa ser bloqueada. Ou a gente volta para os anos 80, rindo de preto, de gordo, de gay, de alcoolismo no domingo à noite. Se pensarmos bem, talvez nem tenhamos saído de lá. Mas estou segura de que não é um humor retrógrado que revolucionários que criaram o Porta gostariam que seus filhos consumissem.
São outros tempos, de fato. Mas você imagine que eu, pelo simples fato de ser mulher, escrevo esse texto com medo dos ataques que seguramente sofrerei por discordar de um humorista que usa o racismo de maneira criminosa para compor suas piadas? E nem uso o nome dele para evitar que uma seita me encontre via Google (o que seguramente não vai me proteger de nada). É, eu tenho medo de violência, sim.
Isso é pouco perto o medo que as pessoas pretas passam todo dia ao sair de casa, ao deixar seus filhos brincarem na rua. Você acha, Fabio, que a gente deve rir disso, em qualquer circunstância? Ou mais: a gente deve dar esse tipo de alimento (a suposta piada) para gente que acha legal rir disso?
Eu sei que não acha. Mas quando tuíta uma ou duas vezes defendendo um conceito que se perdeu no tempo, atrai uma galera que acha. Acredita que as respostas de seu tuíte são em grande maioria de pessoas que compraram aquele selinho azul naquela rede social e agora dizem qualquer bobagem com autoridade de "verificado"? Ali, pelo que vejo, concordam com você. Voltou o coro do mimimi, voltaram ataques à pauta progressista. A piada violenta que você defende que seja livre compactua com tudo isso.
É complicado, Fabio, para a gente que se expõe profissionalmente, assumir o erro enquanto é atacado por uma avalanche violenta do cancelamento. Mas não tem jeito, é respirar e notar a beleza de perceber que pode estar errado. E mudar de ideia.
Você, com todos os privilégios, é capaz de levar uma galera junto. E isso ajuda a minoria: quem normalmente está ali quietinho porque tem medo de apanhar. Boto fé que o diálogo muda as pessoas e o mundo. Aí, que maravilha, a gente ri junto.
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