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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Eu Nunca', na Netflix: a leveza do mundo em que questão racial não existe

Eu Nunca: diversidade racial não é uma questão no roteiro - Divulgação/Netflix
Eu Nunca: diversidade racial não é uma questão no roteiro Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

26/06/2023 04h00

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Três amigas — uma negra, uma indiana e uma oriental — protagonizam uma série adolescente. A loira padrão não é a algoz predadora que pega os meninos gatos no colégio. Ela simplesmente não está lá. "Eu Nunca", que estreou sua quarta e última temporada na Netflix nesse mês de junho, não é uma série sobre diversidade racial. É uma série sobre adolescentes em que a diversidade racial é uma constante. Parece o mundo, só que como ele deveria ser, não como ele é.

A personagem principal, Devi, tem uma personalidade que é uma confusão danada. Orfã desde o primeiro episódio, ela busca artifícios para se destacar entre os alunos de um colégio. Ela também quer se destacar entre os garotos. Quase todo seu entorno é composto por pessoas não brancas — da psicóloga às professoras, os personagens fogem ao estereótipo branco que costuma ser predominante em comédias de costumes.

Não é o que vemos na vida social adulta em grandes metrópoles brasileiras. Grandes eventos públicos, como foi o show dos Titãs recentemente em São Paulo, são repletos de pessoas brancas. Diversidade é exceção em um país que se diz acolhedor, mas é racista e no qual as diferenças econômicas apartam e fecham portões de estádio. O branco não vê isso. Eu, mulher branca de 40 anos, não pensei no assunto nas quase três horas que pulei ao som do rock que me acompanhou durante vida toda. Só me dei conta quando fui alertada: "Só tem branco aí". "A gente tem que falar disso agora? São os Titãs...", eu argumentei internamente. A gente tem que falar disso o tempo todo.

Pessoas pretas reparam no abismo de representatividade quando ligam a TV, quando saem de casa, quando pisam em eventos caros. Se Devi fosse a única pessoa que não é branca nas festas que frequenta em seu colégio, talvez sentisse o impacto. Talvez só falasse disso. Se "Eu Nunca" se passasse aqui, na vida real, Devi olharia de maneira diferente as questões adolescentes, o amor, o sexo. Sempre haveria a carga de não se sentir no direito de pertencer.

Há algumas semanas, intrigada com a leitura dos livros de Patrícia Hills Collins, socióloga pensadora do feminismo negro, tive a oportunidade de perguntar para a própria: qual o meu papel como branca na luta antirracista? Ela se recusou a responder. De um jeito educado, com um inglês acadêmico, basicamente me mandou estudar. Fiquei chateada pensando no quanto o embate comprometeria a entrevista, mas percebi uns dias depois que ela estava certa. Não haveria uma maneira de responder que não fosse me colocar para pensar.

Nos dias em que a questão racial no show dos Titãs foi colocada, eu quis fugir da conversa. Como se pudesse assim proteger o privilégio de curtir o show de uma banda que gosto sem problematizar tudo. "Eu sou antirracista", eu dizia, minimizando a questão. O que eu percebi também depois é que meu privilégio foi construído sobre uma colonização equivocada. As cores de pele do hemisfério sul foram massacradas. Há países da Europa que ofendem a pessoa preta mesmo quando ela é a estrela do jogo. É legítimo que eu goste de uma banda. É complexo abrir mão do sossego do privilégio para se por a estudar um assunto incômodo. Mas é o único caminho possível para quem quer realmente ser antirracista. "Não me venha com sua fragilidade branca", disse Patrícia. Xablau.

E ser antirracista é o mínimo que a gente pode fazer.

"Você pode até ser antirracista mas, no fim do dia, o outro sempre vai ser mais preto que você", disse minha amiga Nathália Geraldo, tirando uma paciência não sei de onde. Graças à paciência de pessoas pretas — que não eram obrigadas a me explicar o que explicaram e mesmo assim o fizeram — fui entendendo. João Pedrosa me disse em entrevista que a representatividade no audiovisual não é a revolução, mas é um caminho.

Um caminho longe do destino. Aí a gente ruma para o universo utópico em que, na TV, Devi só fala da bagunça que é seu coração e impulsos sexuais aos 17 anos. Meu filho brinca de Jedi assistindo um desenho em que o protagonista é preto. E eu olho para os Titãs com um incômodo de não conseguir mais desver o que me foi mostrado. Não tem como mudar o passado, mas dá para pelo menos pensar em como a gente quer esse futuro.

Se mais gente branca se juntar nesse incômodo, a gente continua andando na direção certa. E somos nós mesmos que precisamos fazer algo sobre o assunto.

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