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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Toy Story adulto: militantes descansaram e vestiram rosa para ver Barbie?

Margot Robbie é protagonista e produtora de "Barbie", dirigido por Greta Gerwig - Warner Bros. Pictures/Divulgação
Margot Robbie é protagonista e produtora de 'Barbie', dirigido por Greta Gerwig Imagem: Warner Bros. Pictures/Divulgação

Colunista do UOL

19/07/2023 13h25

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Uma multidão vestida de diversos tons de rosa toma o shopping Eldorado, em São Paulo, na noite desta terça (18). A première da Barbie vai começar às 20h e, em filas de pessoas vestidas com as cores que são símbolo da boneca mais famosa do mundo, as pessoas se acotovelam.

Do lado de fora das cordas que separam VIPs de civis para tal evento, transeuntes olham descrentes para o burburinho pink. Parece inacreditável mesmo.

Qual o melhor look da pré-estreia de Barbie? Vote!

Eu escondo sob o look todo preto uma pashmina rosa — o que simboliza de certa forma sentimentos confusos acerca da bonequinha. Posso gostar do símbolo de um padrão de beleza que machuca pessoas? Não seria essa confissão o contrário de tudo que prego atualmente?

Gostar da Barbie é controverso. Dá medo de me arrancarem a carteirinha de feminista se disser isso alto por aí. Todo mundo sabe que as proporções estão erradas, que ninguém tem as pernas daquele comprimento, nem os peitos tão duros, nem a cintura tão fina.

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Onda pink: na pre-estreia do filme da Barbie, pink era dress code
Imagem: Luciana Bugni/UOL

Mesmo assim, tal padrão estético estereotipado — loira, magra e impecável — é copiado à exaustão por aí. A aspiração pela beleza da Barbie pode ter vindo antes da boneca, criada em 1959. Mas ela certamente ajudou a perpetuar esse modelinho, que é frustrante e inalcançável, nas mãos e mentes de muitas crianças.

O filme de Greta Gerwing dialoga com esses questionamentos. Num Toy Story adulto e satírico, é exatamente essa a problemática da história protagonizada por Margot Robbie.

O mundo montado na garagem de casa era perfeito, mas quando aquelas crianças cresceram se depararam com uma vida real que é, bem... essa aqui de um mundo dominado por homens e construído para seu bem-estar, as ilusões desmoronaram. Não era só o corpo da Barbie que nunca teríamos — ainda bem, no caso, porque seria estranho. A gente nunca vai chegar perto de perfeição nenhuma.

A memória guardada em caixas de brinquedos

Já ouviu falar de memória tátil? A expressão me veio à cabeça quando toquei a caixa de sapatinhos rosa da Barbie que está guardada na casa da minha mãe com as bonecas, móveis de madeira feitos pelo meu pai e roupinhas costuradas pelas mulheres de minha família há cerca de 30 anos. É estranho não ter doado esses brinquedos para alguém que pudesse brincar com eles? Também acho.

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O Cinemark do Eldorado foi decorado por Warner, Mattel e outros parceiros
Imagem: Luciana Bugni/UOL

Parece um jeito de eternizar um pedacinho da minha vida em que a família toda ainda estava viva, que o piso da garagem era cor de tijolo, que o portão nem sempre era fechado com cadeado e que a gente voltava da escola correndo pela praça para montar cômodos improvisados por horas, colocar roupinhas no cabide e preparar tudo para uma brincadeira que nunca começava de fato. "O melhor da festa é esperar por ela", escuto a voz de minha avó.

Memória tátil ao passar a mão em um cabelo de nylon, liso como o meu jamais seria, que leva à memória olfativa: cheiro de bolo de cenoura e limonada suíça. E leva a memória auditiva da voz minha mãe gritando "venham comer". Aquela boneca de formas não humanas e de apenas 30 centímetros me transporta para mim mesma. Quem é que vai poder julgar a futilidade desse movimento nostálgico, coletivo e febril que tomou o planeta?

Karen Jonz e Lucas Silveira na pré-estreia de 'Barbie' - Patrícia Devoraes/Brazil News - Patrícia Devoraes/Brazil News
Karen Jonz e Lucas Silveira na pré-estreia de 'Barbie'
Imagem: Patrícia Devoraes/Brazil News

Uma amiga voltou à cidade natal nessas férias de julho e também reencontrou suas Barbies. Ela me contou que limpou, penteou, vestiu e agradeceu. "Ah, mas a gente vai celebrar algo tão fútil em um mundo que está desse jeito?" Talvez possamos olhar para as referências que temos e entender como viemos parar aqui. Pensar nunca é demais.

Quantos nós em laços de pequenos hobbys de seda pink precisamos desatar para entender nosso papel como mulher em 2023? Quantas vezes precisamos olhar para a cara de Kens que parecem perfeitos para entender que mesmo assim não era bem isso que queríamos para o resto da vida?

Ou, outra pergunta: do que você brincava quando era pequena nos anos 1980? De feminista? Ou de polícia e ladrão? Dá para problematizar tudo, mas não dá para desconstruir memórias de infância por causa de um vídeo agressivo no TikTok feito por alguém que nunca penteou uma Barbie.

"Brincar de ser mãe com bonecas que imitam bebês pode ser legal por um tempo, mas não o tempo todo. Pergunte à sua mãe", diz uma frase do filme. Com a Barbie, brincava-se de ser o que queria: algumas coisas deram certo, como morar na própria casa (mesmo sem uma ampla banheira rosa enfeitada de cisnes). Outras não funcionaram muito bem — a Ferrari rosa metálico eu nem cheguei a almejar.

Mães, tias, avós — no meu caso, pai também — compunham essa comunidade costurando minibolsos de 1 cm nos minicasacos de 7 cm. Fútil? Um guarda-roupinha repleto de amor era algo que fazia parte da rotina familiar e virou fonte de renda em mini trajes que minha mãe costurava e vendia.

Essa função barbielândia em uma casa de BNH nos anos 80/90 em volta de cinco bonecas e uma vizinhança inteira traz laços de afeto. Privilégio? Sim, afeto é privilégio mesmo. Mas deveria ser básico.

O filme é perfeito? Não.

Não dá para fazer uma ode ao hype de um filme sobre um brinquedo que entristeceu tantas meninas que não eram brancas, magras e loiras. Só em 2016 a Mattel entendeu que, financeiramente, compensava fazer novas Barbies, que contemplassem outros tipos de cabelo, de pele e de corpo.

Em 1989, a minha saída para ter uma boneca favorita que parecesse minimamente comigo foi eleger a Vicky, amiga da Barbie que tinha a pele mais morena, sardas e cabelo ondulado grisalho — basicamente o que me tornei na idade adulta, sem nem cogitar aquela cintura.

Muitas mulheres maduras também demoraram para entender que reproduzir o machismo incorporado ancestralmente não era certo. Vamos seguindo, apanhando, aprendendo. Apesar da variedade de etnias no filme de Greta, há apenas uma boneca gorda. A grávida, então, é piada — o modelo foi descontinuado pela Mattel, de tão estranho que seria uma Barbie ter um filho. Maternidade é imperfeição, mas brincar de boneca pode ser fingir um pouquinho.

A militante não descansou, não. Até a Barbie tem pensamentos não perfeitos em 2023. Evoluir é irreversível. Mas, para isso, talvez o melhor caminho não seja debochar do laço de amor construído naqueles sapatinhos minúsculos e pezinhos esquisitos cujo calcanhar não tocava o chão. Mães e filhas, agora adultas, fazem que sim com a cabeça. Escolhamos batalhas.

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