No show de Paul McCartney, catarse ensina a celebrar a finitude em vida
Quando Paul McCartney e sua extraordinária banda entoam os primeiros acordes de "Obladi, Oblada", uma senhora de cabelo chanel branco imediatamente se levanta da arquibancada do Allianz Parque, em São Paulo, e começa a dançar.
Ao seu lado, seu filho segue sentado, filmando a apresentação. Depois de alguns segundos de gravação, vira a câmera para a mãe e registra sua coreografia por uns segundos. Ela devolve um sorriso doce, que também fica registrado.
Eu tinha pensado que não precisava ir ao show de Paul McCartney pela terceira vez em um intervalo de dez anos. Achei que era show demais em 2023. Nem posso dizer que tenho essa maluquice por Beatles, apesar de viver em uma família completamente beatlemaníaca.
Não é uma banda que aparece com frequência nos meus fones de ouvido quando ouço música sozinha. Mas como você e todo mundo que você conhece, inúmeros clássicos embalaram momentos importantes de minha vida.
Pois o tal do homem chegou no Brasil e um arrependimento começou a me corroer: "E se for o último show dele?", me perguntavam aqui e ali. Bateu uma preocupação real de ser a última oportunidade de escutar as mesmas canções das outras vezes — o músico pouco altera sua receita de sucesso de turnê para turnê. E, cá entre nós, por que mexer em time que está ganhando? Mudei a rota, apareceu o ingresso de alguém que desistiu e fui.
Paul McCartney vai morrer. Não há fatalismo na frase: eu e você também vamos. O fato de o ex-Beatle ter 81 anos pode deixá-lo um pouco mais perto do fim da vida que pessoas décadas mais novas — apesar de, definitivamente, não ser o que parece quando Paul entra no palco e tem energia para dar pulinhos que eu nem ousaria. Mas não é sobre o "e se for a última vez?" que pensamos quando ele enche o estádio de hits. É sobre a vida em curso.
O show e as quatro ou cinco gerações que superlotam um mesmo estádio três ou quatro vezes em cada cidade são uma contemplação à finitude. Pode acabar, sim. Porém, por enquanto, é eterno. Músicas de 60 anos atrás sossegam os nossos corações combalidos de tantas batalhas.
"Eu tenho que admitir que está melhorando/ Um pouco melhor toda hora/ (Não pode piorar mais!)", diz Paul. A gente canta querendo concordar — tem que melhorar, não tem? Olhando aquela multidão cheia de fé, acredito que está tudo bem, sim.
E se a morte for reversível? Na arte, é
O escritor Jeferson Tenório contou na última Flip que tem notado uma tendência a publicações sobre o luto desde a pandemia. Das perdas que acumulamos ao nosso próprio medo de morrer, o assunto é recorrente na arte e nas sessões de terapia.
Paul acha por bem fazer um dueto ensaiado com um vídeo de 50 anos atrás de John Lennon, morto há mais de 40 anos. Ali, colorido, vivo, vibrando. Se por apenas 30 canções, pudéssemos fingir que a morte é reversível, é claro que faríamos isso.
"Todo mundo teve um ano difícil, todo mundo teve momentos bons", eles cantam. Paul afirma que todos vão dançar essa noite: "Todo mundo vai se sentir bem hoje". A senhora à minha frente reluz de tão encantada.
"Carry That Weight" confessa que eu quebro no meio das celebrações porque carrego esse peso há muito tempo. "Black Bird" coroa a sequência de músicas em que o choro escorre. Será que eu pego essas asas quebradas e aprendo a voar?
Do palco, ele diz que eu estou apenas esperando esse momento surgir. "Volte para o lugar onde você pertencia", diz o refrão da música que dá nome à turnê — em uma catarse quase religiosa, dezenas de milhares de pessoas gritam procurando a si mesmas. Estamos perdidos há muitas décadas.
As palavras de sabedoria sussurradas: deixa estar, diz "Let it Be". Os caras inventaram a autoajuda e ainda deram o crédito para uma tal de Mary? Nos lutos todos que vivemos, "no mundo que, não devíamos, mas andamos levando sobre nossos ombros, o movimento que a gente precisa está justamente ali".
Os conselhos para um tal de Jude servem a todos. E que ideia boa pegar canções tristes e melhorar tudo! A música vem dizendo que a vida continua, como dança a senhora grisalha à minha frente. Seu filho balança a cabeça concordando: la la la life goes on.
Newsletter
SPLASH TV
Nossos colunistas comentam tudo o que acontece na TV. Aberta e fechada, no ar e nos bastidores. Sem moderação e com muita descontração.
Quero receberVocê pode discordar de mim no Instagram.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.