Caso PC Siqueira: devemos falar sobre isso e ouvir quem está pedindo ajuda
Sou de uma escola jornalística que, como regra, não noticiava suicídio. Tragédias de cunho cinematográfico chegavam às redações de jornal no começo do século e as mortes podiam até ser reportadas, mas não tinham detalhes expostos nas páginas impressas do dia seguinte. Naquela época, dizia-se, falar sobre suicídio de alguém era dar munição para que outras pessoas fizessem o mesmo.
A baliza não impediu que pessoas se matassem nos últimos 20 anos. Porém, acentua-se nesse 2023 o pipocar de notícias que se assemelha ao de uma epidemia. Tem mais gente se matando, ou estamos falando mais sobre isso? As redes sociais e o WhatApp escandalizam o leitor desavisado distribuindo áudios e prints com riquezas de detalhes sobre a morte de pessoas famosas ou quase-famosas. O jornalismo então muda as próprias regras e fala sobre suicídio, fornecendo o serviço do CVV (Centro de Valorização à Vida) no pé das matérias. Teria como ser diferente?
Aconteceu na noite dessa quarta (27), quando a timeline do meu Instagram ofereceu, entre brindes de amigos e pernas bronzeadas nas praias e piscinas às vésperas do Réveillon, a notícia da morte de PC Siqueira. O rapaz, aos 37 anos, tirou a própria vida. Ele havia tido problemas com drogas e falado sobre término de namoro em suas redes sociais. Viveu ascensão rápida do YouTube à TV há pouco mais de uma década. A derrocada foi parabólica, com perseguição em redes sociais, processos que não se provaram e perda de alcance e de dinheiro. Segundo as reportagens, ele já havia falado de se matar em oportunidades anteriores. Como seria possível ajudá-lo?
Não é só ele. Mais cedo, Lee Sun-kyun, ator que atuou no premiado filme Parasita, havia sido encontrado morto em seu carro. Aos 48 anos, ele esteve envolvido em um escândalo com drogas ilícitas e foi interrogado na véspera de Natal. Não segurou a onda. A jovem Jessica Canedo tirou sua vida aos 22 anos na semana passada, ao ter seu nome ligado a fake news sobre Whindersson Nunes. A história colocou os olhares sobre perfis de fofoca no Instagram, como a página que publicou prints falsas de conversas da moça com o influencer. As consequências foram perversas e Jessica não aguentou. Ninguém tem aguentado.
Em um período reflexivo como o do fim de ano, as redes sociais evidenciam a alegria de quem anda empolgado e feliz nas Festas. Do lado de lá da balança, pessoas que não estão tão bem scrollam a timeline infinita buscando um pouquinho de dopamina. O efeito é catastrófico — quanto mais se busca alegria na telinha do celular, mais evidentes ficam suas próprias frustrações. O "não aguento mais" tem uma carga mais pesada do que o que se dizia antes em tom de desabafo. Solidão e um ciclo vicioso de drogas receitadas que não fazem mais efeito geram outras vítimas. E ninguém sabe muito mais como procurar ajuda. Vai contar para quem o que você sentiu na noite de Natal? Para aquela amiga que está maquiada e linda com uma taça de espumante na mão nos stories? Nas redes sociais, a gente sempre é menos.
Está nítido que precisamos todos de ajuda. Falar sobre suicídio poderia salvar vidas. Olhar no olho do outro e realmente querer saber a resposta do "como você está?" pode ajudar muito. Mentir que se divertiu nas redes sociais para se sentir melhor não funciona nem para quem posta, nem para quem vê. Mesmo assim insistimos em cobrir os problemas com o tapete dos likes para que ninguém saiba da fraqueza do outro. O outro é a gente mesmo. Falar sobre isso pode nos salvar lá na frente também.
É terrível que a internet traga a crueldade de notícias falsas que podem tirar vidas. Ou a viralização de cenas terríveis, sem levar em conta a saúde mental de quem recebe tudo isso do outro lado da tela. Tivemos, no mesmo ano da graça de 2023, o caso dos atentados nas escolas repetidos à exaustão para que qualquer criança de 12 anos com o celular do pai na mão pudesse ver. Antiga deep web hoje está na superfície — a rede social e o WhatsApp esfregam o que não deveria ser visto na cara de quem não deveria estar vendo.
Paralelamente ao bombardeio de gatilhos, temos a chance de usar a rede para compor redes verdadeiras — as de apoio. E marcar aquele café lá fora, seguido de um abraço, de um olho do olho, de um sinto muito que realmente sente. Que a gente possa conversar sobre o assunto até tirar o elefante da sala. Há uma imagem no livro infantil Chapeuzinho Amarelo, do Chico, ilustrado por Ziraldo, de que gosto muito: é preciso falar do lobo mau muitas vezes para deixar de sentir medo. E de tanto dizer lobo-lobo-lobo, ele vira bolo. Aí fica doce.
As mortes dos últimos dias são lamentáveis e exibem nosso reflexo no espelho. Não cabe mais nada embaixo do nosso tapete. O negócio é falar do lobo até ele virar sobremesa.
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Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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