Vidas Passadas e as grandes histórias de amor em que nunca houve um beijo
Um casal está no metrô, frente a frente. Suas mãos quase se tocam em um poste de apoio, mas seguem paradas. Eles se olham. É justamente a ausência do toque que traz a densidade do tanto que poderiam estar fisicamente juntos. Quantas vidas cabem na lacuna de um abraço ou de um beijo?
A cena, de Vidas Passadas, filme de Celine Song que concorre ao Oscar, é um dos símbolos do que poderia ser se não fosse outra coisa. Quantas vidas você deixou pelo caminho quando fez outras escolhas? Das mil bifurcações pelas quais passamos, as da vida amorosa em relações monogâmicas praticamente anulam a outra possibilidade. É inevitável ver o filme ser pensar nos caminhos que desapareceram à esquerda porque achamos em certo momento que a melhor opção era o trajeto à direita.
A história, você já deve ter lido na crítica: Nora (Greta Lee) era uma criança na Coreia do Sul quando sua família decide se mudar para o Canadá. Como um trator, ela não demonstra tristeza, apenas segue. Sua primeira paixão, Hae Sung (Teo Yoo), parece ficar mais abalado com a partida. Ambos se encontram 12 anos depois, via Skype, e inauguram conversas que desafiam o fuso horário. Rompem novamente. Mais 12 anos se passam e vem finalmente o primeiro encontro físico na Nova York onde Nora vive e é casada com um homem americano.
O clichê da boa história de amor, em que o marido é um obstáculo coadjuvante de uma paixão arrebatadora é subvertido. Não é por ter deixado para trás as tantas possibilidades de vidas que não gostamos da que escolhemos. É justamente por acreditarmos termos feito a escolha certa que todas as outras vidas que poderíamos ter vivido se perdem.
Tem uma série espanhola na Netflix que fala disso: "Se Eu Soubesse". A protagonista volta no tempo para nunca ter aceitado um pedido de casamento. No meio da ação percebe que aquela escolha a privaria de suas filhas e enlouquece tentando corrigir a catástrofe. Quando entra filho no meio, a vida do casal fica mais indissolúvel mesmo. Deve ser por isso que casais com filhos brigam tanto nos divórcios.
Nora não tem filhos, nem por isso aventa a possibilidade de romper com suas escolhas para partir em uma aventura amorosa com a ideia que faz de paixão (ou que fazia quando era criança). O lance é que a presença de Hae Sung a traz de volta para si própria. Lá atrás, em cada bifurcação, a gente se perde um pouco de si também.
Senti isso fortemente há dois anos, quando enterrei uma amiga querida. Sentia falta dela, mas sentia uma inexplicável saudade de mim, do que eu era com ela há 20 anos, quando gargalhávamos nos semáforos indo para algum show. A partida de minha amiga me fez recordar de uma versão de mim que abandonei com as escolhas que fiz enquanto amadurecia. Seu desaparecimento parecia levar consigo uma "eu" que era só nossa e que sem sua ajuda não consigo mais acessar. Nem toda escolha é a gente que faz.
No filme, Hae Sung protagoniza a própria figuração nas decisões que sua melhor amiga toma. Porém, 24 anos depois, traz essa "eu" de volta para Nora. Sua visão infantil da amiga, perpetuada pela distância de décadas, é um resgate de sua própria personalidade. O amor que ele sente por ela é a vontade de se resgatar também, de redescobrir a simplicidade de ter 12 anos, correr em um parque, caminhar lado a lado, gargalhar. "Onde eu fui parar?", eles nos fazem pensar.
A profundidade dessa conexão de resgate do outro é para poucas e longas relações. No filme, é associada segundo a cultura sul-coreana às vidas passadas. Aqui no Ocidente, nem precisa acreditar em encarnações. Em uma vida passada estou esperando um amigo no prédio da prefeitura, enquanto o sol de põe, ouvindo uma fita K7 em um walkman. Em outra, parada na porta de um bar, em uma confraternização de fim de ano, me despedindo de maneira blasé de alguém que nunca mais vi. Em outra, cedendo um beijo desajeitado dentro de um carro, na chuva. Em outra, perguntando "quer subir?" para um homem que me deu uma carona —ele está dormindo ali no quarto agora e nosso filho anda pela sala pedindo Sucrilhos. Cada escolha é deixar ir alguma coisa para ganhar outras, explica a mãe de Nora no filme.
Vidas Passadas não é só uma história de amor sem beijo. É um retrato da busca por si mesmo. E, às vezes, ter relações que atravessam o nosso próprio tempo serve como um espelho de nós mesmas. É olhar para aquele amor antigo para lembrar das nossas antigas ambições e entender o que mudou. O choro não é saudade de um amor perdido, apenas. É um pouco de saudade do que não se viu, nem vai se ver.
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