Luciana Bugni

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Opinião

'Em São Paulo não tem isso' e mais: ué, Carnaval não ia unificar o Brasil?

Minhas amigas cariocas posam para uma foto com um estandarte na folia da cidade maravilhosa onde se lê: "Em São Paulo não tem isso". Não costumo discordar das lindezas que são minhas meninas do Rio: São Paulo não tem um monte de coisa. Por do Sol em Ipanema, tartarugas no mar do Leme... ih, a lista é longa. Mas "isso", num bloco de Carnaval, é o quê?

Olho para os lados, saltitando na São Paulo onde eu vivo. Aqui, amigas retocam glitter em um posto de gasolina (São Paulo tem muito posto de gasolina). Uns saem à procura de mais bebida mineira em latas. São feitas a base de rum e em grande quantidade podem complicar condutas, dizem. A gente está em um bloco que acumula um público de 100 mil pessoas no centro da capital paulista, em homenagem a um cantor baiano. Na trilha do Tarado ni Você, homenagens a umas quatro capitais brasileiras compostas por Caetano Veloso (isso que eu contei).

Meu irmão manda um video de Olinda, onde está fantasiado de cachorro, fazendo amizade com um vira-lata em uma ladeira. Ele se posiciona ao lado do cão e repete seus movimentos até que firmam uma parceria que deve durar alguns minutos. Minha cunhada está fantasiada de água-viva, no mesmo Pernambuco, em outra imagem. Parece que a turma deles escolheu homenagear o Jogo do Bicho e cada um foi de um animal. No Rio de Janeiro também tem isso, eu vi em um documentário da GloboPlay.

Na Bahia, Baby resolve pregar o apocalipse para a multidão que pipoqueia abaixo. Ivete mostra ter o raciocínio mais rápido da folia, emenda um hit e perpetua a expressão "macetar o apocalipse". Todo o Brasil passa os demais dias repetindo a frase. Ivete vai além e resolve descer do trio. A massa homogênea de gente faz ondas pulando. Onde é que tem isso, meu Deus?

Leio um post do roteirista Roberto Vitorino na quarta-feira de cinzas que diz: "O carnaval não é nossa festa. É nossa inteligência. Nossa proposta de mundo. Longe de ser nacionalista, mas não deveria ser o poderio bélico que faz de uma nação uma grande potência. Um país que tem a felicidade como identidade, como principal traço cultural e que, todo ano, celebra em dimensão apoteótica a vida, é a grande potência do planeta. Repito, não é entusiasmo ufanista, não. É simples verdade geopolítica."

Será que vem daí o incômodo que senti com a ostentação de tal estandarte? Digo a uma das minhas amigas: "Que fixação em São Paulo, hein". Ela retruca que a gente que tem fixação. Bom, então não é isso que não tem em São Paulo. Rio de Janeiro tem tradição de folia, tem aquele texto maravilhoso do Ruy Castro sobre o carnaval em 1919, depois da gripe espanhola — galera tá comemorando assim há mais de 100 anos e isso é maravilhoso.

Mas dou uma pensada nos últimos quatro dias na rua, vestindo maiô, bebendo em latas compradas em ambulantes, me fantasiando, pulando, cantando, encontrando gente, amando — e "comendo um hambúrguer no Sujinho meia-noite, meu". Ninguém mencionou o Rio em momento nenhum, exceto para lamentar a ausência de um ou outro amigo que atravessou a Dutra. No Rio de Janeiro tem até isso, gente de todo lado. É por tantos motivos que eu chamo de maravilhosa, vou para lá sempre que possível.

Mas meu Carnaval é do lado dos meus aqui na cidade onde moro. Cada um é feliz de seu jeito. Carnaval é o momento carpe diem em que não se pode pensar no que está perdendo. Sempre tem uma boca mais interessante para beijar, um bloco mais interessante na rua de baixo, amigos mais animados no lugar onde você não está. Carnaval é aceitar as decisões e curtir. Imagine se dá tempo de pensar no que não tem em outro estado? Eu, hein, são só quatro dias. Imagina eu em Santa Tereza pensando no Saia de Chita? Não pode.

Em São Paulo, se vê uma infinidade de eventos em que se escuta de forró a rock, passando por homenagens à Rita Lee, Belchior, Alceu Valença e mais tantos. Carnaval, pelo que entendo de folia, é um lugar onde se tem tanto que é incomum pensar no que não há ali -- embora entrar no mar seja sempre interessante.

Volto para cima do trio do Tarado, na manhã de sábado de Carnaval. Estou chorando. Chorando porque o Brasil é imenso e bonito. Chorando porque não sentia a sensação de estar no alto do trio há dez anos, desde a última vez em que fui a um Carnaval de Salvador. E chorando porque tem uma banda fantástica tocando Sampa na esquina da Ipiranga com a São João, um lugar que nunca me disse nada — nem paulistana sou — mas eu finalmente entendo o que Caetano quis dizer. Eita que é preciso estar lá para saber.

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Nesse sábado (17), tem Abacaxi de Irará nessa São Paulo de onde eu teclo, bloco que homenageia o tropicalista baiano Tom Zé. Os arranjos de sopros são do meu amigo Sergio Wontroba e do Marcelo Segreto e tem um monte de gente querida e legal envolvida no movimento. O próprio Tom Zé, aliás, sempre aparece por lá. Imagina ele com uma placa dizendo "Em Irará não tem isso"?. Deve ter, deve ter. Bom na vida é querer ter o que a gente tem mesmo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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