Luciana Bugni

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Opinião

Porto Alegre, campanhas de artistas e o que a gente faz com tanta tristeza

A manchete do jornal impresso em cima da bancada de minha cozinha diz que vai voltar a chover no Rio Grande do Sul. Eu abaixo minha cabeça como quem pede a Deus para segurar a onda. Folheio o jornal duvidando da fé. O mesmo jornal me diz que as águas do Guaíba desceram bastante de terça para quarta - o bastante é 20 cm. Olho as paredes no meu apartamento seco calculando a diferença que faria. O nível do rio subiu 5 metros e meio em Porto Alegre.

Uma amiga posta a projeção do rio Pinheiros cheio, feita por uma inteligência artificial. A água chegaria no meu bairro e tomaria tudo, eles preveem não cientificamente. Falo sobre isso com meu filho e ele me olha aterrorizado: "Mãe, você está me assustando". Respondo que é por isso que ele precisa levar a sério os planos de ser um guardião da natureza. Penso em nos mudarmos para a Amazônia e esperarmos o fim de tudo por lá onde o Brasil ainda é, de certa forma, mais Brasil.

Vou almoçar com outra amiga que me diz que nos deram um paraíso para morar e a gente estragou tudo por ganância. Ela fala que só se sente melhor por não ter filho pequeno. Penso no meu guardiãozinho da natureza. Faz 36ºC na minha cidade no outono e derreto no asfalto. Penso que diferença faria se eu usasse copos plásticos para beber água. Frente à destruição em massa proposta e realizada por bilionários e magnatas, não mudaria muita coisa. Sigo evitando plástico de único uso, entretanto.

Em Porto Alegre, a jornalista gaúcha Sabrina Passos diz que ninguém está bem. Quem está seguro também não, quem perdeu tudo também não, quem está em um telhado implorando por água também não - nessa parte aqui, um arrepio toma meu corpo. Meu apartamento seco me dói. Ninguém está bem em lugar nenhum, mas tem gente que está pior, com sede. E tem gente também saqueando casas, cobrando por resgate, impedindo voluntários de chegar aos locais mais afetados, em um tipo de pedágio pirata em barquinhos. "Distopia", meu irmão diz por WhatsApp. Tem corpos embaixo da ganância flutuante na lama e fake news no grupo da família.

Desvio o olhar da GloboNews, sem som, uma tela marrom com telhados. Penso nos colegas cobrindo a tragédia in loco no Sul, naqueles que trabalham à distância no resto do Brasil, nas crianças sendo resgatadas em escolas inundadas. Choro. Não tem mesmo Deus para mandar um solzinho, secar umas coisas... o governo precisa agir.

Livros boiando: dá para salvar a história?

O dono de uma livraria em Porto Alegre também chora ao mostrar seu negócio inundado, seu prejuízo, a imprudência do poder público, o negacionismo climático. Diques podres com parafusos enferrujados e nenhum centavo para isso. Quem enriqueceu para todo o resto colapsar?

Na praça de Santa Croce, em Florença, tem uma placa nos muros que informa o nível da água que invadiu a cidade: "No dia 4 de novembro de 1966, a água chegou a essa altura". Há uns anos, passei alguns momentos ali imaginando o transbordamento do rio Arno, a igreja embaixo de água, as construções seculares invadidas. Na Galeria Uffizi, o chão do corredor Vasariano (aquele que Dan Brown deixou popular) tremia. Gente correndo para fazer uma pilha de quadros e salvar a história da arte. A Biblioteca Nacional, com manuscritos importantes da história do mundo, virou lama. As ruas do centro histórico foram invadidas por uma correnteza violenta que demorou 45 dias para ser limpa. Quanto tempo o Rio Grande do Sul vai precisar para voltar ao trilho? "Anjos da lama", como os italianos, bastam?

Hoje, Florença está em pé com as obras de arte que foram salvas e seus gelatos. Penso no moço dono da livraria gaúcha com um milímetro de esperança. Mas até lá, como a gente faz com a dor?

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Minha cabeça me manda outra vez para a Amazônia: um indígena paraense olhou nos meus olhos para dizer "É que vocês lá do País entendem o que a gente sabe aqui'. Era 2012, a ganância da força que ergue e destrói coisas belas represava o rio Xingu para erguer a usina de Belo Monte. O povo xikrin explodia banheiros químicos com bombas na cidade para tentar parar a obra. Ninguém "aqui do País" quis noticiar o que eu vi por lá. Belo Monte triunfou, o monstro de concreto no meio da floresta. Eu nunca mais voltei a Altamira.

O Brasil que ajuda: até quando?

Agora, meu feed mostra Felipe Neto, que arrecada R$ 5 milhões em poucas horas e orquestra algum alento. Tudo é pouco quando a tragédia é macro. 150 mil pessoas sem casa, 450 mil sem luz, 70% da população da capital sem água. 400 cidades afetadas. Mas o brasileiro faz o que pode. Os artistas cooperam e mobilizam gente, dinheiro, comida, roupa, galões. Pessoas comuns também. Olho a foto aérea da região e penso que não tem conserto para logo depois emendar que tem conserto, sim. A gente arruma tudo.

Em casa, separamos doações para enviar. Tem que postar stories? Eu olho o feed descrente. Tem gente ajudando, tem gente pedindo ajuda, tem gente mostrando que ajudou para incentivar mais gente a ajudar. Tem gente fazendo propaganda de seus produtos e dizendo que vai doar 1% das vendas (juro). Tem gente de todo tipo. Por aqui, fazemos Pix em QR Codes de fonte confiáveis e ficamos ainda mais tristes por saber que é pouco.

A água que eu tomo desce engasgada. O que vai acontecer quando a moda de postar stories incentivando a ajuda passar? Quando a audiência do noticiário coberto de lama baixar, mas o estrago das águas não? O que vai ser daquelas pessoas? O que vai ser da gente quando deixarmos de sentir a dor do outro? A rede negacionista inventa mentiras para tentar se aproveitar da catástrofe. Um culpa o outro. Os homens que elegemos querem aprovar leis que permitam desmatar mais para fazer pasto — você tem fome de quê?

A gente, aqui no País, não entendeu nada mesmo.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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