Luciana Bugni

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Opinião

É só religião? Por que 200 mil pessoas deixaram de seguir Anitta em 2 horas

"Eu não acho que você saiba como eles me chamam", diz o refrão de "Aceita", o clipe mais dentro dos padrões (da moral e dos bons costumes) que Anitta lançou nos últimos tempos. Sim, é daquele que dá para mostrar para a avó, de boa. No vídeo, ela passa a maior parte do tempo vestida, dança de maneira comportada para o julgamento da família tradicional brasileira e afirma de um jeito quase ingênuo que é uma mulher da favela, com cara de atriz de novela e que o ex-namorado a achou bonita no Coachella. Mesmo assim, Anitta perdeu 200 mil seguidores ao anunciar a música.

O clipe se passa em um terreiro de candomblé — o que poderia ser apenas um local religioso como tantos outros, é alvo de imenso preconceito. Grande parte das pessoas cristãs costuma afirmar absurdos a respeito das religiões de matriz africana e tratar orixás e entidades como representantes do mal. Uma ignorância, já que o candomblé não é maniqueísta. Diferentemente de igrejas brancas, ali não há o que represente Deus em contraposição ao diabo. Todos carregam as duas energias dentro de si.

Aceitar o diferente tem sido tópico comum de conversas sobre como continuar convivendo com o outro em uma época em que metade das pessoas quer exterminar o grupo que a outra parte acha que deve defender. Não é surpreendente que Anitta tenha perdido centenas de milhares de seguidores ao divulgar fotos em um terreiro quando a música se chama justamente "Aceita".

Em um período adoecida, ela focou ainda mais sua fé na religião. No clipe, não por acaso, aparece vestida com as palhas de Obaluaê, orixá da saúde. Tudo no vídeo é simbólico: o fogo que queima o que não se quer mais, o banho que purifica, a chuva que limpa a terra e o corpo. Tambores, roupas branca, muita natureza — e também bíblias, santos, cartas de tarô. É um clipe que abraça a fé, qualquer que seja. Mas as referências às religiões negras ali na tela incomodaram antes mesmo do clipe ser lançado.

"Eu tenho fé, não tenho medo. Desejo que as pessoas sigam o caminho da evolução", ela respondeu amorosa e elegante.

Paulinho, artilheiro do Brasileirão de 2023, também sofreu preconceito ao ser convocado pela seleção brasileira. Ele agradeceu Exu e todo mundo caiu em cima. Imagina que loucura ter que tomar cuidado a cada "Graças a Deus" que você solta o dia inteiro porque o pessoal pode achar errado? Não faz o menor sentido. Por que o meu é certo e o do outro é um absurdo? A palavra que resolve tudo tem oito letras: respeito. Minha criação católica falava disso o tempo todo.

Se a polêmica infelizmente é rotina para os praticantes de religiões criadas por afrodescendente — e chega a ser perigoso, pois a intolerância descamba para agressões com frequência — o clipe de Anitta traz novidades que passam despercebidas no turbilhão da disputa de fés. "Se, nos outros vídeos, a gente só rebolou a raba e falou sacanagem, nesse aqui é possível se emocionar", ela diz. Ponto.

Na letra, não dá para dizer que há vulnerabilidade (é a Anitta, ué, e ela canta versos como "Me pagam em euros para me ver e eu decido em cima de quem vou me mover"). Mas tem algo a se pensar em "Não acho que você sabe como eles me chamam". Quem sabe?

200 mil pessoas que não se chocaram funks do novo projeto estão escandalizadas agora, que ela está vestida falando da fé... que é estranho, é. "Vou morrer assim, nunca vou mudar, não é tão difícil aceitar", diz a letra em espanhol.

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Agora, se quer ser preconceituoso, seja coerente. Não dá para achar errado o banho de ervas que Anitta está tomando na foto e, no ano novo, caprichar na roupa branca para pular sete ondas e deixar uma rosa para Iemanjá. Fica em casa. A gente vai adorar a praia de Copacabana mais vazia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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