Luciana Bugni

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Opinião

O dia em que Chico Buarque, que faz hoje 80 anos, me negou um abraço

Dizem que um copo de água e um abraço não se nega para ninguém. Bem, eu nunca pedi água para Chico Buarque de Holanda.

Fui criada em uma casa com uma vitrola e Chico Buarque. Aprendi na primeira infância sobre a ditadura e a censura, embalada por versos de "Vai Passar", "Acorda Amor", "Cálice" e explicações empolgadas de minha mãe sobre coragem e poesia. Cresci e sempre achei que o artista brasileiro que vai na estrada há muito anos tinha um não sei quê de magnético, colocando melodia em tantos dos meus sentires da adolescência e do começo da vida adulta. Tantas vezes em que estive louca para perdoar.

Imagina encontrar o Chico Buarque?, diziam as mulheres lá de casa vez ou outra. Pois é, imagina. Imagina, imagina, hoje à noite?

Certa vez, meu primo o encontrou andando no calçadão do Leblon e demorou a reconhecer. Passos à frente, após ter cruzado com o homem de estatura média na terceira idade e cumprimentado como quem lembrava dele de algum lugar, teve o estalo: era o Chico. O fato foi assunto de jantares em família por meses.

Como perde uma oportunidade dessas? O que se faz quando está encarando Chico Buarque? Meu primo olhou para o Morro Dois Irmãos e seguiu a caminhada como se fosse alta madrugada.

Minha mãe, recentemente, se acomodou no chão em um teatro experimental carioca para ver um espetáculo. Foi se arrastando para trás e acabou encostando nas pernas do homem sentado na primeira fila. Virou-se para se desculpar e emudeceu: era o Chico Buarque com o joelho a 5 centímetros de sua nuca. É raro, mas parece que acontece. Petrificada, disse que se voltou para o palco e assistiu à peça procurando nem respirar, nem o incomodar.

Só que fui parar em uma profissão em que conviver com celebridades acaba sendo rotina. Todo o encanto de falar com alguém muito famoso perde parte do glamour quando há metas, prazos, textos e fechamentos (e gritos) por trás de conversas normalmente bem distantes dos papos que a gente tem com quem a gente gosta.

Pode-se até simular uma intimidade e, às vezes, dependendo do quanto o entrevistador é desenrolado, a entrevista vira um papo gostoso. Não se pode esquecer, entretanto, dos motivos que levam àquela cumplicidade repentina: o artista precisa de publicidade para seu trabalho, o jornalista precisa da reportagem. Esse trato velado vira texto e, se os envolvidos tiverem sorte e executarem bem a coreografia das perguntas e respostas, bastante gente lê.

Em outubro de 2009, recebi a missão de ficar na cola de Chico Buarque. Trabalhava na revista Contigo! , um dos títulos brasileiros que à época tinham tradição no jornalismo paparazzi de celebridades. A prática, em tempos que os próprios famosos compartilham suas vidas de propósito nas redes, se perdeu. Mas naquele fim de década, eu me dedicava a seguir pessoas, insistir, pedir respostas, cutucar feridas. E chorar nos intervalos. Que aflição.

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Chico estaria no Prêmio Bravo!, revista do mesmo núcleo que a Contigo!, mas que, diferentemente dessa última, era muito querida pelos artistas. O compositor estava em sua versão escritor naquela noite e havia aceitado o convite da Abril e ido até a sala São Paulo, no centro da cidade, para ganhar um prêmio de literatura pelo romance "Leite Derramado", recém-lançado. Eu deveria grudar nele e arrancar uma entrevista de alguém que nunca fala com a imprensa. Ou seja, sonhar mais um sonho impossível.

Olhando em retrospecto, penso que poderia nem ter tentado. Bastava chegar à chefia no fim da noite e confirmar o óbvio fracasso. Mas eu era dessas mulheres que só dizem sim (para a minha chefe, Denise Gianoglio). É assim que a gente alcança o rótulo tão almejado de bom profissional, me disseram, então fiz o que podia: esperei na coxia e pedi o que precisava com o melhor sorriso que encontrei.

- Oi, Chico, você pode falar comigo?

- De onde você é?, ele me mediu dos pés à cabeça.

- Da Revista Contigo, gaguejei vendo tudo ruir.

- Não.

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- E se eu esperar aqui até o fim da premiação, você muda de ideia?

- Não.

Ignorei e passei quase duas horas em pé em um corredor apertado, esperando seu retorno.

- E agora, Chico, você fala comigo?

- Não.

- Uma frase só, qualquer coisa me ajuda. Me conta como foi a noite?

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- Não.

- E se eu esperar até a hora de você ir embora?

- Não.

- Mas vou esperar.

Ele deu de ombros. Subiu ao camarim e voltou minutos depois. Eu estava em uma escada estreita pela qual ele deveria descer. Desviou de mim contrariado, levando meu sorriso e meu assunto.

- Chico, é muito importante para a revista ter uma frase sua...

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- Não, ele disse se livrando de mim, elegante, mesmo sendo o espaço restrito.

- E um abraço?

Ele se virou lá da parte baixa na escada, duvidando do que tinha ouvido. Eu repeti, só para ter uma história para contar:

- E um abraço, Chico, me dá um abraço?

- Não.

Ele disse gargalhando, e foi embora.

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Há 15 anos, a história virou uma anedota na editora Abril. Mas hoje, enquanto Chico assopra 80 velas em Paris, me dou conta de quantas vezes fui abraçada por ele antes e depois de nosso encontro. O Neruda que tomei de alguém e de fato nunca li (nem devolvi). Os Saltimbancos Trapalhões que ninavam meu filho e me explicavam que não era eu quem repetia a história, era a história que adora uma repetição. O fato de ir fumando, porque também sem um cigarro nem segura esse rojão (ai, se mamãe me pega agora). O noivo correto, a que quase desmaia. O samba com categoria, com calma, para alegrar o dia e zerar o jogo.

E o não se afobar que nada é para já — gostaria de contar para a garota afobada que buscava uma aspa nos bastidores da Sala São Paulo que o amor não tem pressa, ele pode chegar. E para quem tem sorte, de um jeito manso que é só seu.

Chico disse não para o meu abraço, mas segue abraçando uma nação toda há tantas décadas e não deve parar. O abraço de Chico em verso atravessa o tempo, o espaço, a sensibilidade humana. Serão bonitas, não importa, são bonitas as canções.

Feliz aniversário, poeta. E me desculpe pela insistência. Me perdoa por fazer mil perguntas?

Você pode discordar de mim no Instagram. Ou, em vez disso, escutar "A Ópera do Malandro", de 1977, do começo até o fim. Que obra de arte.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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