Luciana Bugni

Luciana Bugni

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

O Rei Leão faz 30 anos e ainda tem pais blindando filhos da morte de Mufasa

Há 30 anos, sem internet ou cultura de spoiler, só se descobria que o pai de um filhote fofo de leão em uma savana africana morria quando já se estava dentro da sala de cinema, vendo o filme da Disney. O "Rei Leão" surgiu nos anos 90 na esteira de grandes sucessos como "Alladin" e "A Pequena Sereia", em fase moderna da marca. A história supostamente original (mas puro suco de Shakespeare) dos felinos adoráveis em uma trama de vingança e poder tinha uma trilha sonora que ficou eternizada e era cativante.

Porém, argumenta-se por aí que a criançada poderia voltar para casa um pouco abalada, sim. E levanta o debate quase surpreendente: você deixaria seu filho ver "O Rei Leão"?

Bom, 30 anos depois, dá para pensar que é realmente pesada a parte em que Mufasa cai quase morto perto do filho, que assiste à agonia final do pai e, culpado, foge. Mas é de personagens órfãos que se constrói o arco da empatia, característica inerente aos grandes heróis da Disney, de Branca de Neve ao Bambi. Todo mundo ama o Simba. Todo mundo quer ver o filhotinho crescer e se vingar do Scar. Todo mundo quer Hakuna Matata.

Será mesmo que a criançada não aguenta saber que, às vezes, o pai pode morrer? E é justamente aí que se compõe o que o filme explica em verso e melodia o ciclo sem fim que nos guiará. Tem dor e tem emoção, mas tem fé e amor também, ouvi dizer.

As crianças da pandemia

Em março de 2021, o Jornal Nacional anunciava o número de mortes causadas pela covid-19 via um consórcio de órgãos de imprensa. A inédita atitude conjunta tinha um motivo deplorável: o governo Bolsonaro não queria revelar números alarmantes de milhares de vítimas diárias enquanto defendia o não uso de máscaras e não fazia muito esforço para vacinar o país.

Na minha casa, uma criança de quase 4 anos aprendia a correr de lado em um apartamento pequeno, completamente isolada do mundo e de outras crianças desde seu aniversário de 3 anos. Entre papéis coloridos e tesoura, pães de fermentação natural, ioga na varanda e reuniões no zoom, eu tentava também educá-lo. A morte entrava em nossa sala pela voz de William Bonner, que anunciava tragédias que não imaginávamos ver nessa vida. Mas, em uma família de jornalistas, era necessário saber pela imprensa o que realmente acontecia lá fora, já que o governo não se esforçava em ser confiável.

Não há maneiras muito brandas de se falar sobre a morte com crianças. Meu filho já convivia com a ausência do avô, a quem não conheceu, e sabia que às vezes quem parece saudável pode deixar de existir de um dia para o outro — foi o caso de Xico, um beta azul que morava no aquário de casa e enlouquecia nossa gata de desejos carnívoros. O ciclo da vida, ali, protegido por uma caixinha de vidro com pedrinhas, até que Xico não aguentou a pressão dos olhos de cobiça do felino, deitou-se de barriga para cima e boiou seu próprio desenlace. Ficou claro: vovô morreu, o peixe morreu, 4.000 pessoas hoje morreram porque pegaram covid. Aos quatro anos de idade, não é pouca coisa.

O aniversário de 4 anos foi no Zoom (tudo era no Zoom naqueles tempos), e o tema era "O Rei Leão". O filme passava todos os dias em casa — em alguns deles de manhã e à tarde, em outros em uma sequência de ciclo sem fim cartoon e live action. A brincadeira no sofá era simular a morte de Mufasa clamando pela ajuda do irmão e se jogar no assento desfalecido. Pesado? Um pouco. Mas perdoe a falta de escolha, diria Ivan Lins: os dias eram assim.

Continua após a publicidade

Para decorar a festa da qual participaríamos os pais e a criança, fizemos desenhos dos personagens em jornal velho, com guache, recortamos e colamos em papel colorido. Mufasa estava entre eles. Quem morre não deixa de existir, meu filho sabia já naquele ano.

Certo dia, talvez à luz da aparição do pai de Simba no céu e da sabedoria de Hafiki, ele me chamou na varanda: "Olha, mãe, o vovô Paulo". Fui checar — 2021 era um ano tão esquisito que nem ia estranhar muito se meu pai, morto 20 anos antes, resolvesse passar lá em casa para uma visitinha. Mas ele apontava uma estrela no céu, ou na brecha de céu que a zona sul de São Paulo nos permitia ver naqueles meses. "Eu tenho certeza de que o vovô Paulo está naquela estrela brilhando para você, mamãe", disse com a cara enfiada na grande, procurando mais um "vagalume que ficou grudado naquela coisa grande azul escura", como diz Timão. "Onde será que está a estrela do Xico?".

A terapeuta e especialista em luto Gabriela Casellato escreveu o livro infantil "Lembrança de aniversário", que conta justamente a experiência de enfrentamento do luto causado pela morte de um peixinho. Para nós, o peixico. Ela afirmou uma coisa bonita aqui nessa entrevista para o UOL: "Tenho tentado ajudar meus pacientes a lidar com essa atitude de superproteção, de achar que a criança não precisa passar por isso, que ela pode ser poupada. Esses equívocos que vão distorcendo nossa relação com a vida e vão atrofiando nossos músculos para lidar com a dor da perda quando a vida nos impõe. Nós vamos perder, nós vamos morrer. Por que não exercitar isso desde cedo? Alguns pais pensam que quanto mais se poupar os filhos disso, melhor. Esse poupar está mais a serviço de tirar a imunidade do que de ganhar conforto. A experiência dói. É muito duro ver alguém pequeno enfrentando a dor, mas ela nos ajuda a entender nossos próprios recursos", diz.

Meu filho, há um mês, sentadinho no teatro vendo o musical do Rei Leão, já sabe que a mãe chora na famigerada cena de um leãozinho dando de cara com o pai morto. E se prepara para me confortar toda vez em que isso acontece segurando minha mão e afirmando que o Simba vai ficar bem. Ele está, na verdade, dizendo que eu também vou. E eu acredito. "Quando a gente rouba o exercício da tristeza, ou impede que ela aconteça, está ensinando uma expectativa distorcida sobre a vida. Se sentir triste é normal e, no contexto da morte, esperado. E a gente dá conta", diz Gabriela.

Mufasa, um leão da ficção, morre de maneira trágica no filme. Quatro mil pessoas morriam todos os dias no Brasil naquele início de 2021. Mas, como João insiste em me provar toda vez que o rei da selva vira vítima da debandada de gnus, a gente vai ficar bem. Encarar o problema também é um jeito de viver e aprender. Até Timão e Pumba já devem saber que nem só de Hakuna Matata é feita a educação dos nossos filhotes.

Você pode discordar de mim no Instagram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes