Luciana Bugni

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Opinião

Todo mundo é a ansiedade: Divertidamente 2 devia vir com alerta de gatilho?

Comecei a chorar no momento em que alguém aperta o botão de puberdade no cérebro de Riley, a então protagonista de Divertida Mente. Na verdade, o protagonista do primeiro filme da série é o cérebro de uma criança liderado pelas incansáveis tentativas da Alegria de se colocar como líder dos sentimentos e aparecer com mais frequência que todo mundo no comando.

No segundo filme, que estreou esse mês e é o assunto tanto das mães na porta dos colégios e quanto dos memes na internet, uma novidade domina a sala de controle da cabecinha de Riley, que agora tem 13 anos. É a chegada da ansiedade com suas malas e latas de energéticos que deixa todo mundo maluco. A ansiedade controla a parada na tela, toda divertida e laranja, e causa sensações curiosas tanto no público adulto quanto no infantil do cinema. Temos uma nova protagonista com pinta de vilã.

"Eu sou a ansiedade": sim, eu também

Uma das metáforas mais bacanas de Divertida Mente 2 é o momento em que a danada da ansiedade assume a sala de controle de projeções da imaginação. A situação é velha conhecida de suas madrugadas: vai dizer que nunca acordou às 3h22, olhou para o relógio na Alexa assustado e pensou nas piores desgraças que a humanidade já criou?

Aqui, a ansiedade chefia uma galera rápida que desenha situações em que perco empregos, pessoas morrem, amigos ficam chateados com coisas que eu disse há semanas, esqueço de fazer a lancheira do meu filho, deixo de entregar trabalhos, sou incapaz de falar em público quando tenho apresentações importantes no dia seguinte, pego dengue, Covid e influenza na véspera de viagens internacionais... a lista é longa e a garganta pegou aqui só de pensar.

No filme, Riley sente tudo isso com o peso que a adolescência traz: ela precisa ser aprovada pela turma. Todos nós precisamos, mas na maturidade a validação de gente aleatória deixa de valer tanto. No filme, mais importante que ser é o que ela pensa que precisa ser para conquistar as pessoas. A receita de um desastre, mas atire a primeira latinha de energético quem não ficou pilhada assim um dia.

O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral fez um podcast sobre o filme em que garante que a adolescência não é esse destempero todo só por conta de hormônios. Ele critica inclusive a fala depreciativa comum entre os pais quando percebem que perderam aquele filho fofinho, que virou um jovem contestador chamado erroneamente de "aborrescente".

"A pressão social sobre o adolescente, o tempo todo perguntando o que ele vai ser e pedindo garantias de futuro é muito mais causador de ansiedade do que os hormônios", ele diz e completa em tom acolhedor: "Muita gente vai se identificar mais do que gostaria com ansiedade". De fato, o número de crianças e adolescentes com ansiedade atualmente é maior que o de adultos, segundo o SUS. Pais relatam inclusive que os filhos tiveram crises vendo o filme — não estive muito longe disso, mesmo tendo, teoricamente, mais ferramentas para lidar com meus divertidamente do que uma criança.

Mas o botão da puberdade de Riley ativou meu próprio botão nos anos 90, tentando estabanadamente ser aprovada pela galera do fundo da sala e bancar uma personalidade que eu nem sabia qual era. Entretanto, no cinema, na semana passada, para além das minhas lágrimas agoniadas, havia um certo sentimento de vitória pensando como foi que eu consegui sair dessa enrascada. Não há aprendizado sem manchas, dizia a propaganda de um sabão em pó.

O papel da tristeza nisso tudo

Nessa investigação interna que a animação da Pixar me submeteu, veio a clara memória da tristeza. Talvez ela mandasse mais na minha sala de controle do que o resto do pessoal caótico que também trabalha bastante por aqui. A Alegria devia ficar sentada lá esperando eu acabar de ouvir músicas deprê que me ajudavam a entender como lidar com sentimentos horríveis e atravessá-los.

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É o "attraversiamo" de Liz Gilbert em "Comer, Rezar e Amar" que deixa Julia Roberts encantada no filme inspirado no livro. Seguir em frente a dor por ter a convicção de que uma hora ela passa fez com que eu conseguisse atravessar minha adolescência. No terceiro dia, a gente coloca o óculos de sol e volta a viver. Foi assim também que atravessei as 15 horas de parto natural (a minha doula repetia isso mesmo: imagine a dor como uma onda que vem a passa). As crises de choro do colegial (a gente ainda pode falar assim para situar o tempo?) com encartes de meus discos tristes na mão podem ter ajudado.

Evitar a dor não traz alegria

O que Divertida Mente deixa claro é que a obsessão por felicidade pode deixar todo mundo buscando demais coisas que não existem. "Trocamos lágrimas, tristeza e frustração, que poderiam nos apoiar a sustentar a elaboração do sofrimento, por produtos, por chocolate e qualquer cosia que nos demova da sensação. Acreditamos que precisamos ficar distantes desse sentimento vazio que corrói", diz Alexandre em seu podcast.

No Instagram, a redatora Juliana Machado me pergunta: "A gente critica negacionista climático, negacionista da ciência... quando vamos falar dos negacionistas emocionais? Difícil alfabetizar os adultos na disciplina emoções se eles só ficarem repetindo que são a ansiedade no filme", ela diz, lembrando o episódio de Black Mirror em que a filha superprotegida vê uma cena de violência pela primeira vez e, bem, o fim é trágico. A gente precisa saber o que é a dor para reconhecê-la. Atraversiamo. Falamos disso essa semana sobre evitar (ou não) a morte de Mufasa em O Rei Leão.

A conversa leva para um livro que costumo citar em todas as conversas sobre não aguentar mais a dor e procurar fugas: "Nação Dopamina". Na obra, a psiquiatra Anna Lembke coloca doces, compras, voyerismo no consumo de pornografia na internet, cigarro eletrônico, álcool, maconha, feed de mídia social e fofoca de Whatsapp no mesmo balaio. A dependência de algo que não está em nós para evitarmos aquilo que está. E que pode não ser agradável.

"Ao protegermos nossas crianças da adversidade, será que fizemos com que morressem de medo dela? Ao reforçar a autoestima delas com elogios falsos, sem ensinar as consequências do mundo real, será que não as tornamos menos tolerantes, mais cheias de direitos, e ignorantes dos próprios desvios de caráter? Ao ceder a cada desejo delas, será que não estaremos incentivando uma nova era de hedonismo?", pergunta Lembke. É imprescindível que a gente tenha consciência de si para criar os filhos de maneira a não tentar protegê-los demais daquilo que nos machucou um dia. Para criar autonomia, é preciso impor limites e permitir que encarem a própria dor. A propaganda está certa: não há aprendizado sem manchas.

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Resumindo, tudo bem que a tristeza dê aquela molhada de lágrimas no controle das nossas emoções. Não é inadequado sentir para construir nossas próprias estruturas de enfrentamento e, então, sentir outras coisas no futuro. Não dá para deixar que a alegria tóxica mande lembranças ruins para outro país só para não doer nada. Vai doer, meu amigo. Mas é como diz o poema de Manuel Bandeia sobre a estatuazinha de gesso que se quebrou e foi colada: "O tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina/ Hoje este gessozinho comercial/ É tocante e vive, e me fez agora refletir/ Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."

Ou, como dizia Cazuza em uma das musiquinhas deprê da minha adolescência, a dor no fundo esconde uma pontinha de prazer, sim. É só dar o espaço para ela.

Sobre Divertida Mente 2: só parei de chorar uns minutos depois que subiram os créditos. Depois, a gente coloca o óculos escuros e vai viver.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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