Luciana Bugni

Luciana Bugni

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Peço desculpas a quem se sentir ofendido, mas parem de pedir desculpa assim

Se for beber, não digite, diz a máxima de segurança online da terceira década do século 21. O risco de dizer algo de que vai se arrepender é gigante. E dá-lhe gente acordando de ressaca e correndo para ver se tem dois risquinhos azuis na mensagem que ontem parecia uma excelente ideia. O potencial aniquilador de reputações é ainda mais bélico nas redes sociais. E, digamos, nem sempre precisa ter álcool envolvido para se dizer ou fazer o que não se deve. E aí o caminho da boa educação - ou apenas da gestão de crise - deixa só uma alternativa: pedir desculpas. Mas como?

Aconteceu essa semana de novo: a filha de Arthur Aguiar disse brincando com um funcionário da casa onde ela trabalha que o celular dele era "de pobre". Não é algo legal de se dizer. Arthur pontuou que a garota é uma criança e não pode ser ofendida, admitiu que a frase está errada e que, se estivesse no local na hora, teria repreendido imediatamente. E aí mandou o clássico: desculpe a quem se sentiu ofendido.

Não é assim que se pede desculpas. Parece que a culpa de estar se sentindo ofendido é de quem se ofendeu. A gente pede perdão pelas atitudes erradas a todos. No caso de pessoas públicas é um fator educativo se desculpar direito e mostrar o caminho certo. (Sem mencionar que uma criança de 5 anos ter um celular de última geração não é bem o modelo de educação sugerido pela OMS).

A frase virou quase uma expressão. Não se diz "desculpa por ter sido mal educado". Se diz "desculpa se te ofendi". E, normalmente, o ofensor emenda algo que dê a entender: quem se magoou está errado, não foi bem isso que eu quis dizer. Entre querer dizer algo e dizer outra coisa há um abismo da interpretação de texto.

Para se sentir ofendido, basta ser humano

Mas como é que a gente entende quando, lá atrás, em tempos ainda mais sombrios, o então ministro da economia Paulo Guedes defendesse que o dólar não devia ser muito baixo porque "até as domésticas iriam para a Disney". Na fala de retratação ele pede desculpas a quem possa ter se sentido ofendido. Nada de mencionar que a fala tem um tom classista e preconceituoso que defende nas entrelinhas que pessoas de classes sociais teoricamente mais baixas não devam frequentar os lugares que os mais abastados frequentam. É uma proposta de apartheid social travestido de "não foi bem isso que eu quis dizer". E ofende mesmo: as domésticas e quem acha que todo mundo que quiser deveria ir à Disney. Na minha conta, isso deveria ser todos os brasileiros e talvez até o Mickey. Como se retratar? Diga que está profundamente arrependido por falar uma das falas mais equivocadas dos últimos anos no país - e olha que a briga é boa.

Entre muitas declarações absurdas, o Pastor Feliciano soltou há mais de 10 anos uma fala estarrecedora sobre as misérias humanas supostamente vindas da África. Também já rotulou de podridão os sentimentos homoafetivos. "Se alguém se sentiu ofendido por alguma colocação minha, em qualquer época, peço as mais humildes desculpas", ele tentou consertar. Se alguém? Africanos, afro-descendentes, homoafetivos e seres humanos em geral que têm um coração se ofendem. Basta nomear o erro, desdizer o que disse e, quem sabe, ensinar algo para si mesmo e para seus seguidores sobre o assunto. Olhar para a própria lambança é uma excelente maneira de aprender e não fazer de novo.

A influencer Gabriela Morais, então Pugliese, teve a oportunidade de fazer algo do tipo em 2020. Com o mundo fechado em um lock down que ali em abril poderia ser eterno, ela achou boa ideia fazer uma festa e postar um monte de fotos de uma galera de rosto colado. Ui. "Fica meu pedido de desculpas para quem se sentiu ofendido." Não é assim: erro desse tipo, vindo de alguém que influencia milhões de pessoas ofende o mundo inteiro - porque naquela época, a gente realmente precisava de quem convencesse os outros a não sair de casa. Ela tentou corrigir de outra forma: não fazendo mais festas enquanto a situação estivesse grave. "Eu fui completamente imatura e irresponsável", disse. Melhor assim. É difícil dar nomes às atitudes, mas é o primeiro passo para não repeti-las.

Certa vez, o ator Rafael Cardoso publicou um vídeo que reproduzia uma piada homofóbica do ex-BBB Nego Di atacando uma blusa cropped de João Guilherme Ávila. Rafael afirmou em uma entrevista que havia mandado uma mensagem para João, explicando e pedia desculpas a quem tivesse ofendido - disse também que republicou sem ver o conteúdo. João estranhou: não havia achado a mensagem, mas nem era para ele que se deve o pedido de desculpas. A questão é uma comunidade gay violentada dessa maneira e de muitas outras todos os dias por questões de vestuário. Errar em cima do erro do outro é errar duas vezes? Não assumir o erro então... perdi a conta. A reprodução de falas como essa perpetua crenças que machucam a sociedade. Não sobre ofender um ou outro: é sobre rever e não repetir.

Continua após a publicidade

Nessa confusão de pedir perdão sem assumir que estava errado, eu estou é com Zidane. Autor da famosa cabeçada em Materazzi na Copa de 2006, ele já pediu desculpas pela violência em campo, mas assume que não estava arrependido.

"Reagi a uma ofensa e, claro, não foi um gesto que se deve fazer. Gostaria de dizer isso em alto e bom som, porque foi visto por milhões de pessoas em todo o mundo, e por milhões de crianças, por isso eu peço desculpas. Eu peço desculpas às crianças e aos educadores que trabalham com crianças mostrando a elas o que é certo e o que é errado", ele disse sem verbalizar que faria de novo. Nem precisa. Um fi-lo porque qui-lo em francês.

O velho "faça o que falo; não faça o que eu faço" não vale grande coisa, mas pode ser mais efetivo que pedir desculpa aos ofendidos como se fosse deles, e não do ofensor, a culpa pela mancada.

Eu, hein. Você pode discordar de mim no Instagram. E desculpa aí qualquer coisa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes