Luciana Bugni

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Opinião

O retorno de Simone Biles, na Netflix: É melhor desistir ou seguir lutando?

Quando Simone Biles abaixou a cabeça em Tóquio, em 2021, e foi buscar a mochila, desistindo da competição, eu estava em uma casa de praia com minha família. Era a primeira viagem que fazíamos todos juntos depois de quase um ano e meio de pandemia e tudo tinha cara de recomeço: andar na areia no frio, sentir o vento e a maresia, comprar polvo na peixaria, fazer na pressão, acordar de madrugada e assistir a todas as modalidades esportivas possíveis. O mundo estava recomeçando para mim, recém-vacinada, esperançosa.

Coincidentemente, ali naquele grupo familiar, fomos criados para não desistir. Sabe o slogan de 2004 em que Ronaldo Fenômeno e Hebert Vianna diziam ser brasileiros e não desistir nunca? A gente leva a sério esse negócio há mais de duas décadas. Então, quando Simone desiste do evento mais importante da vida de um atleta (que só acontece a cada quatro anos e, naquele momento específico, tinha demorado cinco anos para acontecer), rolou um silêncio na sala da casa de praia. Como assim, ela PODE desistir? Qualquer um pode? Como funciona isso?

Recentemente, quando Joe Biden decidiu salvar a nação americana renunciando à própria candidatura, muito se falou na beleza de recuar. O fotógrafo Léo Aversa descreveu com humor a cena nem tão imaginária assim em que Biden decide jogar tudo para o alto para ir à Disney com os netos. O fato dele ter quatro vezes a idade de Biles e talvez estar livrando os EUA de um candidato criminoso conta a favor. É completamente compreensível que um senhor se dê ao luxo de se privar de um desafio para fazer o que bem entender.

Biles, mulher negra, aos 23 anos, não teve a receptividade do senhor americano. Pelo contrário: sua nação esperava que ela superasse o que fosse para brigar por uma medalha. O documentário da Netflix mostra em detalhes a reação da mídia e do público. "É um cara que nem sabe dar uma cambalhota e vem me julgar", diz a melhor ginasta do mundo sobre um dos jornalistas que a atacou em Tóquio. Tem um ponto mesmo.

O que aconteceu com Simone foi sério. Ela teve um tipo de apagão entre o salto e a aterrissagem. Estamos falando de uma mulher que pula em velocidade alta e dá piruetas no ar. Cair errado faz perder medalhas. Cair muito errado pode ser fatal. Naquela situação, desistir é se proteger. Não tem muita escolha.

Francisco Bosco disse no Papo de Segunda, da GNT, que, na teoria, quando algo nos faz estruturalmente mal, é hora de desistir. Quando algo nos faz estruturalmente bem, mas tem ponto negativos, não é a melhor opção fugir. Nisso entra um casamento legal, por exemplo. Não faz sentido se separar só porque brigou. Mas se só brigar, faz. O problema é que nem sempre essa decisão racional fica clara nas piruetas carpadas que nosso cérebro dá. Olha o que tem de gente insistindo em relacionamentos tóxicos horrorosos sem sequer procurar a porta de saída. (Aqui, um adendo: existe uma vida maravilhosa após um relacionamento abusivo. Procure apoio de pessoas queridas, converse sobre assunto e mantenha em mente que desistir é, sim, uma opção benéfica.)

Outro ponto que separa Simone Biles, a melhor ginasta da história do esporte, de nós, pessoas que vão para o escritório todo dia, é a possibilidade de virar a mesa, jogar o laptop no chão e dizer chegaaaaaaa. Toda vez que me dá muita vontade de fazer isso, eu abro uma pastinha que chama boletos e fico brincando de escolher qual eu vou pagar primeiro. Dá uma vontade danada de voltar a trabalhar bem quietinha, você precisa ver.

Emicida tem uma frase interessante sobre a maneira como a gente se julga no passado. Falamos do que já aconteceu de um lugar muito confortável que é o futuro. Hoje, Biles agradece o salto errado pois sabe que com esse deslize levantou a bandeira de saúde mental. O documentário vai fundo nos acontecimentos da vida da atleta, que envolvem abuso de drogas materno, adoção e abuso sexual no esporte. É comum mirar em uma coisa — a medalha olímpica em 2021 — e acertar em outra — um debate mundial sobre os limites não só do atleta, como de qualquer pessoa. A hora de parar. Recuar. Pensar. Aceitar que talvez o plano não precise ser bem aquele. Mais difícil do que concretizar o que se quer pode ser refletir se ainda se deseja aquilo, né? E a que preço?

A gente muda. O que fica é a essência. Simone tatuou a frase de Maya Angelou: "Ainda assim, eu me levanto". É de sua essência levantar. Na volta aos treinos, se diverte no ginásio compreendendo que se achar e se perder (e tudo aquilo que é viver) fazem parte da construção de sua saúde mental. "Quis desistir umas 500 mil vezes e teria desistido se não fosse por elas", diz sobre as colegas de equipe que arrancavam gargalhadas nesse percurso. Quando sobe ao pódio no Mundial, em 2023, olha para si e para as outras duas meninas negras que estão ao seu lado. Uma delas é a nossa Rebeca Andrade. Ela está ali por todas as próximas que virão também. Simone voltou porque soube parar.

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Celine Dion, que cantou na abertura dos Jogos, símbolo de força em meio a uma doença seríssima, também é o tipo de pessoa que chacoalha tudo. Dá para parar. Dá para se superar. Dá para voltar quando você achar que é possível. Vamos?

Tem dias em que escrevo textos ruins. A internet cai na minha cabeça de vez em quando também. Às vezes, é gente conhecida que me ataca pelo que escrevi. Ter um trabalho exposto é assim mesmo, embora meus erros dificilmente representem risco de fratura no pescoço. No máximo, umas unhas roídas. Há vezes em que penso em desistir — e é mais fácil para mim, que fecho o computador, vou lavar uma louça e volto depois, tudo isso longe das câmeras de TV de 200 países na Olimpíada.

Simone volta aos Jogos nas próximas semanas com suas piruetas impossíveis. Mais que isso, ela pisa no tablado sabendo que a expectativa de um planeta não é tão importante quanto suas próprias convicções.

Eu, daqui, continuo escrevendo meus textinhos. Mesmo com toda a brahma, com toda a cama, com toda a lama. Se fosse tatuar o "Ainda assim, me levanto"de Biles, faria uma versão em português musicada: "a gente vai levando". A gente não tem cura, não.

E você?

Pode discordar de mim no Instagram. Mas se for para xingar, xinga com jeitinho que às vezes a gente fica sensível. E ainda assim, se levanta. Quem me convenceu essa semana foi a maior ginasta da história.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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