Luciana Bugni

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Opinião

O dia de quem tem pai ausente: domingo fica mais complicado com rede social

O dia dos pais é complicado para quem vive a ausência paterna na pele desde sempre. Mas nos últimos 10, 15 anos, ficou ainda mais difícil com as redes sociais. Além do desencaixe que a gente já é, de certa forma, acostumado a sentir, fotos de todo mundo muito feliz com suas famílias completas parecem dizer que uns têm sorte, outros nem tanto. Não é bem assim, mas vai explicar isso para quem está scrollando e se comparando...

Como atravessar esse domingo e chegar inteiro na segunda-feira quando é bem esse dia que nos lembra de que nunca seremos inteiros?

Não é só no dia dos pais em que a gente pensa na ausência. No sábado, por exemplo, eu cortei manga para o meu filho. É uma bobagem cotidiana que não me toma mais de 10 minutos: descascar a manga, cortar em quadradinhos, colocar em um pote a fruta que será distribuída em outras cumbucas aqui em casa. Acrescentar iogurte, granola. Mas cada vez em que faço isso, me vem forte o vazio deixado pelo meu pai.

Ele cortava manga gelada para mim e fingia que era para ele mesmo. Ia reclamando de brincadeira que eu ia comer tudo — e às vezes eu comia mesmo. Hoje, olhando com olhos adultos, vejo que aquele homem parecia feliz em dividir sua fruta favorita comigo. Sua morte há 23 anos nublou um pouco minhas memórias.

É como se carregássemos um buraco da ausência e, mesmo que já estejamos de certa forma habituados a ele, a dor seja diferente em alguns dias. Hoje, especialmente hoje, seria legal que ele estivesse aqui — nos outros dias todos também, mas a gente vive de agora.

Temos, entretanto, a memória. Em frações de manga cortada, em fotos amareladas e, com sorte, em vídeos de câmeras analógicas antigas. Em histórias que os parentes contam (e contam cada vez menos quando os fatos são separados de nós por décadas).

As lacunas da voz

Há muitos anos, vi uma peça no Tuca, em São Paulo, chamada "Interior". Ali, o elenco narrava suas próprias histórias de infância, em uma costura muito bem feita da narrativa. Lembro de cenas e frases até hoje, mas havia uma garota que contava seu medo de esquecer a voz do pai morto. Ela se lembrava de fatos, como ele ter votado no Lula na eleição de 1989 contra o Collor, mas não conseguia se lembrar da maneira como ele dizia isso. Nesse momento, no teatro, eu me dei conta de que não lembrava também. E mesmo hoje, duas décadas depois, vasculho o cérebro e VHS antigos procurando uma frase curta que me faça recordar. O azar é que ele era um cara meio calado.

Ainda assim, dolorido, a morte é o impeditivo justo (por mais injusto que me pareça) para não conviver com o pai. Não é que ele não quis me ver me tornar adulta, me graduar, virar uma profissional de sucesso, acompanhar meus passos e, de vez em quando, cortar manga para mim. Ele "só" morreu.

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A ausência proposital

Esse domingo em que as pessoas exaltam seus pais em fotos fofas do passado ou do presente, os almoços de família são servidos com sorrisos e os melhores vinhos são abertos, pode ser ainda mais triste para um monte de gente que não tem sequer a imagem do pai na cabeça.

No Brasil, 500 crianças são registradas todos os dias sem o nome do pai. O aborto paterno, costumo dizer, sempre foi legalizado. Há ainda os pais que somem durante a infância dos filhos. Constituem outra família e se esquecem da anterior. Quantas histórias assim você vê ao redor? Muitas. E o número infelizmente não para de crescer.

Há ainda o caminho oposto das relações entre pai e filho: quando o pai corre atrás do amor dos filhos e é desprezado. Hoje também deve ter pai ansioso por um carinho e chateado por não receber amor com reciprocidade, um café na cama, um carinho. Me lembra um dos filmes que mais me fez chorar recentemente: "Beautiful Boy" ("Querido Menino", em português, disponível na Prime), em que Steve Carrell vive um pai desesperado para salvar o filho das drogas. Entre idas e recaídas, a gente vê a injustiça das relações unilaterais. Ali, em cena, causada por um problema de saúde, a dependência química. Nem vou dar mais spoiler, mas vale a pena ver para pensar as relações com nossos próprios filhos em tempos em que o algoritmo dita afetos e tudo que se faz pelo outro parece pouco. É interessante pensar sobre a hora de parar de insistir e seguir.

É também sobre essa relação complicada do pai com o filho a peça em cartaz no teatro Vivo, "Memórias do Vinho". O acerto de contas entre ambos (Herson Capri e Caio Blat) vem na vida adulta. Nunca é tarde. Quer dizer, às vezes é meio tarde, mas ainda assim melhor do que nunca.

Lidar com fragmentos de memória, com a imaginação do que teria sido se o pai tivesse o nome no registro, com o desejo intenso de proximidade com os filhos que nunca acontece... tudo isso fica exacerbado em dias em que todo mundo parece tão feliz. Nisso, as redes sociais são especialistas. E eu sempre fico pensando em como acolher quem não se sente pertencente aquele grupo.

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Entretanto, o dia de hoje precisa ser atravessado, há pais ao redor que devem ser celebrados. Ficar feliz por eles é o primeiro passo: eu vou curtir todas as fotos fofas que aparecerem na minha frente genuinamente feliz pelo amor ao redor. E fazer panquecas com meu filho, que equilibrará uma bandeja até o quarto para oferecer um café na cama que ele ajudou a preparar. O amor se renova cada vez que vejo a minha geração se esmerando na paternidade e superando a anterior. Que bom.

Desejo que quem sente a alma doer hoje possa encontrar um jeito de ser feliz. O meu, na manga cortada, na lata de pêssego que abri sozinha pela primeira vez em 23 anos -- vê como uma hora a gente supera? Pequenos fragmentos de um domingo que seja possível para todos nós.

A gente pode falar mais disso no Instagram.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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