Luciana Bugni

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Opinião

Não é apenas sexo ou solidão: Motel Destino mostra alívio de poder confiar

Você já ouviu falar de "Motel Destino", filme de Karim Aïnouz que estreia na próxima semana no Brasil. Quando o longa concorreu à Palma de Ouro em Cannes, em maio, arrancou 12 minutos de aplausos empolgados da plateia e ainda viralizou no tapete vermelho quando "Coração", do Aviões do Forró, tocou nas caixas de som e o elenco quebrou parte do protocolo de gala para dançar em frente às câmeras. Bem Brasil, do jeito que a gente quer.

Se o seu algoritmo não filtrou nada disso, você vai ouvir falar do filme nos próximos dias porque brasileiro gosta de ser brasileiro, mas ama mesmo é sexo (fazer, olhar ou falar sobre) e isso não falta no colorido motel em que se passa a história.

A repercussão internacional pegou pesado nesse tema, inclusive. A revista Vanity Fair falou que foi o filme mais sexy em Cannes. A Variety chamou de luxúria descarada. A Ioncinema disse que se trata de hedonismo à beira do caos.

Curioso. O elenco realmente aparece seminu ou nu em grande parte da história e transa o tempo todo mas, para mim, "Motel Destino" é um filme sobre solidão. Mais do que motel, o que pega ali é o destino mesmo.

A história é mais ou menos explicada no trailer: Heraldo (Iago Xavier) se envolve com uma moça em uma festa e vai com ela para o motel. No dia seguinte, ele tinha uma missão com o irmão — cobrar um homem que deve para sua chefe. Mas acorda trancado no quarto sem dinheiro, pois foi assaltado pela garota com quem havia transado. Conta com a ajuda de Dayana (Nataly Rocha), que libera sua saída mediante um combinado: ele deixaria o RG e levaria o dinheiro depois.

Em poucas horas, a vida de Heraldo descamba. E ele volta ao Destino para pedir abrigo. "Só preciso de um lugar para ficar", diz. Dayana abre a porta para ele e permite que passe um tempo ali ao convencer o marido e dono do estabelecimento Elias (Fabio Assunção) que o hóspede pode ser útil para o negócio. A confiança entre o rapaz e a recepcionista é mútua.

E nem precisa falar, às vezes: a cumplicidade está no olhar, a comunicação está no não-dito. O próprio Karim disse na coletiva do filme que fez tomadas de todas as cenas em silêncio após gravar com diálogos. Na montagem, foi limando frases e acabou usando muitas cenas em que nada se diz. A confiança também está no que não se fala.

A partir da chegada de Heraldo, a luxúria e o hedonismo citados pelos veículos gringos realmente assumem o lugar de protagonista. O som ambiente são gemidos dos clientes do motel (ou dos vídeos pornôs esquecidos em TVs ligadas). Tudo remete a sexo. O filme é quente, úmido e sussurrado. Mas por mais que seja contraditório, o prazer também pode ser atrelado a estar só.

Elias gosta de falar sobre o assunto. Mostra consolos e vibradores com um prazer quase colegial. Mas percebe que o interlocutor não compartilha a empolgação. Mostra uma janela onde é possível ver o que se faz do lado de dentro de um dos quartos. Se masturba olhando. E tudo carrega uma tristeza de não estar de fato dividindo nada com ninguém.

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É com essa mesma carga que acontece o encontro físico de Heraldo e Dayana — sob frágeis cercas elétricas e avisos de "é proibido", eles cedem à atração que exercem um pelo outro. Seus corpos juntos parecem fazer sentido. No encaixe, eles viram finalmente um ser livre. Mas depois de gozar, voltam às suas reclusões. Limpam banheiros, penduram lençóis vermelhos, lustram espelhos que revestem as paredes. Sorriem um para o outro, claro, naquela cumplicidade que temos com quem já dividiu com a gente tamanha intimidade. Mas estão essencialmente sozinhos na impossibilidade de concretizar a vontade que têm de ficar juntos o tempo todo.

Há um cena que reflete isso: Dayana diz que não sabe nada de Heraldo e ele se dispõe a contar cenas fortíssimas de sua infância. Ela escuta. Ele fala mais alto. Parece estar liberando de si uma mordaça de muitos séculos — não porque era segredo, mas porque nunca havia encontrado ninguém para escutar. Ela retribui contando uma coisa sua. Eles se entendem em suas dores. E esse é um laço indissolúvel, como se tivessem ali criado uma parceria extremamente íntima. "Ah, mas estavam pelados se penetrando e se lambendo minutos antes". Não importa: intimidade mesmo é alguém olhar no seu olho e verdadeiramente querer ouvir o que você quer contar mas nem sabia que podia.

A cena me lembrou a frase de Renato Russo: "Quero ter alguém com quem conversar/ Alguém que depois/ Não use o que eu disse contra mim". Mais de uma década depois, o mesmo compositor previu que o mal do século era a solidão. Cá estamos, cada um de nós imerso em sua própria arrogância esperando por um pouco de afeição.

Para voltar ao nordeste de Karim, a música de João Gomes que toca no início do filme, "Meu Pedaço de Pecado", fala sobre essa sede de estar a dois quando você finalmente vislumbra a possibilidade de não ser mais só. "De corpo colado, vem dançar comigo. Quero ser teu namorado, ficar do seu lado e falar no ouvido que você é a mais bonita, um pedaço da vida, de felicidade. Vem matar logo o desejo, faz esse vaqueiro feliz de verdade. Vem matar logo de beijo, eu quando te vejo acabo com a saudade". E tem coisa mais solitária do que a saudade, mesmo quando é a dois, cada um para um lado do mesmo motel, como Dayana e Heraldo?

O destino no motel do filme, entre toalhas e lençóis de um Brasil profundo, pouco difere da história de qualquer um que já tenha olhado no olho de outra pessoa e finalmente percebido que pode dizer tudo. Luxúria é gostoso, hedonismo tem um quê de salvação no caos, mas gostoso de verdade é poder confiar em alguém.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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