Filme sobre Fernanda Young mostra coragem de mulher que diz a verdade
O filme "Fernanda Young - Foge-me ao Controle", dirigido por Susanna Lira, com roteiro de Clara Eyer e Ítalo Rocha, que estreia nessa quinta (29) nos cinemas, começa com a escritora, roteirista e atriz dizendo que aquele lugar onde está, o deserto de sal da Bolívia, é o mais lindo do mundo. E aí diz que está irritada com o guia turístico no passeio, que ensina "coisas do ensino médio" que ela não quer saber. "Não dá para não reclamar. Eu acho que a reclamação é um movimento otimista." A chave ali, em um cenário que acha lindo, é o olhar positivo, porém ranzinza, de saber o que é belo, mas tirar o que incomoda. Dá para melhorar sempre.
De 2006 a 2010, Fernanda tinha um programa na GNT com o sugestivo nome de "Irritando Fernanda Young". A irritação era um movimento também. Enquanto está bravo, ninguém está inerte. Isso ela de fato nunca esteve: desde os 20 anos, quando começou a colaborar para programas como "Comédia da Vida Privada", na Globo, seguiu produzindo. Já foi roteirista de sucessos como "Sai de Baixo", "Os Normais", "Os Aspones", "Minha Nada Mole Vida", "Surtadas na Yoga" e "Shippados", esse último em 2019, quando não resistiu a uma crise de asma seguida de parada cardíaca e respiratória no interior de Minas Gerais e morreu.
Trechos de seus 15 livros publicados são narrados pela atriz Maria Ribeiro no filme. Há, no mosaico criado por Susanna, também ilustrações de Fernanda, que chegou a cursar artes plásticas (um dos quatro cursos acadêmicos que começou e não terminou). "O documentário mergulha neste lado literário. Ela se ressentia por não ser reconhecida como escritora, e foi uma voz sobre o feminismo em uma época em que o assunto era pouco abordado", conta a diretora. O filme ganhou os prêmios de Melhor Montagem no Festival "É Tudo Verdade" e de crítica no Festival de Paraty.
Escrever sob circunstância de afogamento
Fernanda subvertia a ordem do pensamento. Brincava com o português e com os sentimentos em romances, poemas, roteiros de comédia e na própria retórica, magnética. Claro, dividia opiniões. Muita gente a detestava pela rebeldia, pelo feminismo punk. "Se omitir é para os fracos", ela rebatia, parecendo desinteressada no ódio que uma mulher forte sempre despertou.
E então usava a arte como salvamento: garante que sabia que seria escritora antes mesmo de se alfabetizar. "Escritora é o que eu sou, o resto é como posso manifestar minhas necessidades". E mudava de assunto muito rápido, segundo ela, para entender a si mesma. "A verdade é excitante e máscula como uma espada", escreveu em um poema. Mentir, esse recurso de sobrevivência que a gente adota desde cedo e nos sufoca, era pouco para ela, que flanava dizendo o que pensava e passava varrendo para trás as consequências. "Eu não quero mentir, isso cansa."
Na Vani (Fernanda Torres), de "Os Normais", personagem pop que traduz a mulher comum, alcança todo mundo. "É difícil ser Vani, uma luta constante de mim contra mim mesma", diz em cena. "Quem sou eu na verdade? A Vani de cabelos rebeldes ou a Vani de cabelo escovado? Estaria a Vani de cabelo escovado sufocando a Vani de cabelos rebeldes?", filosofa o texto. E quantas de nós ainda estão sufocando nós mesmas em personagens que criamos por incapacidade de lidar com a represália que sofre quem diz a verdade?
Fernanda foi casada com Alexandre Machado, que namorou desde 1990. Ele era seu principal companheiro de trabalho. Ela se dizia uma militante do amor, sentimento que faz com que todos fiquem muito parecidos. "Amor é democrático. Todo mundo é igual. Tá com ciúmes? Tá. Tá inseguro? Tá. E tá excitado? Tá! Isso é lindo", falava empolgada, antes de alarmar: "Mas o amor proibido causa muito estrago".
O raciocínio labiríntico dava voltas para entender o ser humano. Nem as pessoas, nem a literatura são lineares — e nem poderiam ser se escrever é, como ela afirmava, uma tentativa de conter o próprio afogamento. "Durante muito tempo, eu me acostumei a sofrer. Quando falavam 'Fernanda, você não tem mais que sofrer', eu dizia 'Tenho, sim'. Você defende seus problemas". O viés otimista, entretanto, vem sempre na sequência e nem dá tempo de digerir: "Hoje faço questão de não romantizar a dor como se isso fosse do escritor". Aqui, uma divisão interessante entre o sentir e o sentir com dor. Pode ser diferente, ela parece alertar a quem está acostumado a viver afogado.
Fernanda teve quatro filhos e garantia que a maternidade a organizou. "Tenho obrigação de criar quatro pessoas e faço isso. Dizia que raspava a cabeça por punição por muitos anos, para não se feminilizar. "Somente os homens são poetas. Eu sou mulher, punida, sempre vagabunda e indecente", reclamava. Depois, pintou o cabelo de várias cores. "Nada é mais indigesto que a liberdade de uma mulher", retocava o batom vermelho quando feminismo ainda não era assunto popular. Em seu escritório, colocou um letreiro com a palavra divina. Se estivesse aceso, ela estava trabalhando e não poderia ser interrompida por motivos "terrenos, humanos, caninos". Quando estivesse apagada, os filhos poderiam entrar. Até o cotidiano era lírico.
Enquanto devoro a costura de cenas de Susanna no documentário, penso que Fernanda era uma pessoa muito interessante, a quem gostaria de ter conhecido. Curioso, porque de fato a conheci em uma tarde de 2010, na Bienal de Arte de São Paulo. Fernanda estava vestida de Frida e a colocamos (eu e o fotógrafo Gustavo Scatena) dentro de um túnel de uma das obras para fotografar. Tomie Othake estava ali naquela tarde também. Fernanda topou tudo. Conversei por bastante tempo com ela. O papo deve estar em um bloco de anotações que eu usava na editora Abril, quando trabalhava na Revista Contigo. Não há arquivos digitais dessa entrevista, pois tudo se perdeu na venda do título para outra editora, em 2015. Eu mesma não tenho o exemplar impresso aqui, mas gostaria de saber o que ela me dizia há 14 anos, em uma das piores fases da minha vida. A gente realmente defende nossos problemas e perde oportunidades de absorver tanta coisa por estar ocupado sofrendo... "Por que, afinal, essa complexidade toda? Essa chatice indagativa existencial?", pergunta em "Carta para alguém bem perto", romance que encontro aqui na estante.
No filme, garante que tem certeza da posteridade. "Nem me preocupo com a morte'. A escritora segue posterior a si mesma no alinhavo poético de Susanna, na voz de Maria Ribeiro, na foto de Gustavo Scatena, na personalidade da Vani e em mim mesma, no livro na estante e na entrevista que não lembro muito bem como conduzi.
Fernanda segue muito viva e é sua escrita que nos resgata do afogamento para fazer com que a gente se lembre que está viva também. Mesmo que estejamos apavoradas. "A coragem não exclui o medo". Obrigada, escritora.
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