Luciana Bugni

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Opinião

Cid Moreira foi meu primeiro ídolo quando criança via gente falar sério

"Boa Noite", ele dizia. Já me ganhava aí. Cid Moreira, que morreu nessa quinta (3), aos 97 anos, apresentou o Jornal Nacional por toda minha infância. E pela de outras gerações também, já que ele ficou no mesmo posto por inacreditáveis 27 anos.

É difícil para a moçada de hoje, mergulhada em minitelinhas, acreditar: mas lá em casa, nos anos 80, tinha uma TV só, que ficava na sala. Às 20h, começava o noticiário e era por ali que quem havia lido o jornal impresso de manhã se informava sobre o que havia acontecido no dia.

Todas as noites, por muitos anos, a vida das pessoas era meio igual. O pessoal chegava do trabalho, afrouxava as gravatas, tirava o salto, jantava e via TV. Todo mundo junto. Uma novela das 19h divertida antes, uma das 20h mais pesada depois — e essa eu não podia ver nunca.

Cid Moreira era a trilha sonora desse tempo. Na casa de BNH de São Bernardo, era a voz dele que anunciava a inflação todos os dias — e era assustador —, descrevia a rotina dos presidentes nos primeiros suspiros da democracia e contava das guerras distantes que, infelizmente, seguem acontecendo. Minha mãe dizia que tínhamos sorte, apesar do preço do leite subir todos os dias, por morarmos em um país onde não havia guerras nem desastres naturais. Na verdade, eu percebi só na vida adulta, sempre tivemos os dois, mas a casinha onde eu morava no ABC me blindava de muita coisa.

Foi ali, na voz de Cid, que eu escutei pela primeira vez sobre o Lula e sobre minha cidade ser o berço do sindicalismo brasileiro. Papas, Aids, Diretas já, Tancredo morto. Todas essas cenas eram o pano de fundo de uma criança empolgada que anunciava: "mamãe, o cidimoleila chegou". Por muito anos, foi piada na minha família a idolatria precoce por alguém que só falava coisas difíceis para quem tinha três anos de idade. Vai entender.

Aqui em casa, 40 anos depois, a gente literalmente vive de notícia em uma casa de jornalistas. Mudou muita coisa: eu moro na capital e todo mundo tem uma tela para chamar de sua. O momento de tirar a TV do streaming e colocar no Jornal Nacional na sala é sentido pela criança de 7 anos que não tem ideia do nome dos apresentadores atuais. Ele não gosta. Acha chato. Passar a primeira infância com uma pandemia na orelha não deve ter ajudado no apreço por notícias, mas será que essa molecada não tem muita opção, não?

O entretenimento pulverizado dificulta a capacidade de concentração, a paciência por esperar algo acabar para ver outra coisa (aqui uma nostalgia do boa noite final de Cid para que pudéssemos ver Tieta), a capacidade de empatia. Ver notícia triste não é mesmo muito fácil, mas não tem exercício melhor para a gratidão do que perceber que tem gente de verdade vivendo dramas de verdade no mundo todo — não é só a gente que sofre, não.

Talvez a voz de Cid Moreira tenha formado meu caráter muito mais do que meus pais ousariam imaginar enquanto discordavam sobre Collor ou Lula serem a melhor opção para a presidência do país na década de 90. Talvez ter uma opção única de entretenimento antes de dormir, enquanto eu penteava Barbies e pedia, sem sucesso, para ver Betty Faria na novela, tenha determinado a profissão que escolhi anos depois.

Eu sei, é saudosismo demais. Mas de quem nossos filhos enfiados em telas e scroll infinito vão se lembrar em 40 anos?

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A voz marcante de Cid Moreira apresentando o buraco que foram os anos 80, questionando Mister M e lendo aquele livro enorme cheio de versículos que nunca li me faz pensar que nesse tempo dava mais tempo de pensar, sem tanta variedade de informação. De repente, o cara levantava da bancada e li um poema baixinho. E a gente prestava atenção!

Valeu, Cid. Gosto de você faz um tempão.

Você pode discordar de mim no Instagram. Mas lá a gente acaba se perdendo em tanto meme e esquece o que estava fazendo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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