Luciana Bugni

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Opinião

'Ninguém Quer': série da Netflix devolve fé no amor a geração ensimesmada

Um homem (lindo) e uma mulher (linda) se conhecem em um jantar de amigos em comum. Ambos são sarcásticos e fazem o outro rir. Ela descobre, entretanto, duas coisas: ele tem uma religião —o que já é chocante para alguém criado em uma família sem fé, em que mal se comemora o Natal— e é um líder religioso praticante.

A pegada pode parecer meio "Fleabag", a série de Phoebe Waller-Bridge em que a protagonista se apaixona reciprocamente por um padre na segunda temporada. Mas em "Ninguém Quer", o moço em questão, Noah (Adam Brody) é um rabino, e isso facilita um pouco as coisas no quesito sexo sem culpa. Não há celibato em sua doutrina. Ele, porém, deve seguir algumas regrinhas e tradições, como por exemplo ficar com alguém que também seja judia.

Joanne (Kristen Bell) está bem longe disso. Apresenta um podcast com a irmã em que o mote é justamente rir de suas agruras sexuais. O sarcasmo é protagonista de sua personalidade e guia de seu sucesso profissional. De um dia para o outro, ela está tomando um sorvete na rua com um cara certinho —e adorando isso. "Sabe aqueles casais que irritam? Era a gente!", diz indignada.

O amor dos outros irrita

Vivemos, no mundo real, uma década de romances pasteurizados em catálogos online em que se arrasta para o lado foto de gente que não causa nada. Um encontro de amigos em comum em um jantar, poder olhar no olho, já parece a sorte grande. Borboletinhas no estômago, em qualquer contexto, talvez sejam a chance da vida na terceira década do século 21. A vida é a arte do encontro, dizia Vinicius de Moraes, que abraçou todas as oportunidades e se casou nove vezes. Está certo mesmo: também há muito desencontro pela vida.

Talvez, por isso, ninguém acredite mais na oportunidade de se apaixonar. Reciprocamente, então, parece coisa de roteiro turco. Pares com um pé atrás evitam os abismos um do outro meio por preguiça, meio para se proteger da preguiça do outro. Em um individualismo exacerbado, por que ceder seu pouco tempo livre para a troca?, pensam os jovens e não tão jovens adultos recém-divorciados. E procuram mais uma série na Netflix para ocupar as lacunas de relações com dopamina via pixel. O ciclo sem fim parece a única alternativa de sobrevivência.

Até Joanne e Noah cruzarem nossos caminhos com seus sorvetes, sorrisos, beijos apaixonados, sintonia de piada, fases de um começo de namoro. Primeiro, na horizontal, loucamente. Depois avançando etapas, conhecendo amigos, encarando um almoço de família sem programação, se embrenhando no abismo do outro. Está com medo? Vai com medo mesmo.

Apaixonados, eles nem cogitam a segurança falsa das outras possibilidades. O pavor de um fim medíocre não salva ninguém de levar uma vida medíocre sem o outro.

A comédia romântica moderna na fase do streaming deu a volta completa. Dá para sacar o fim de todas —é justamente essa segurança que nos deixa ali quietinhos assistindo histórias imbecis com personagens em geral sem carisma.

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A história de uma mulher progressista com um líder religioso judeu, entretanto, é um mistério. O amor proibido tem tudo para dar certo. Não são eles, os apaixonados, o entrave para a relação andar. Mas em volta, "ninguém quer" que aquilo funcione. O sucesso de um amor daqueles estamparia o fracasso de todo mundo que vive suas vidas mais ou menos em suas testas. "Como assim eles estão felizes? Quer dizer que eu poderia ser feliz também?" Eu, hein.

E pra sogra, nada?

Em um momento, a sogra pergunta se Joanne ganha dinheiro falando de sexo em público. A nora confirma. E devolve: "e a senhora, como ganha dinheiro?" A segurança da matriarca sustentada pelo marido é fachada, mas apavora até as mais sarcásticas. Quando ninguém aprova, a gente tem medo. Mesmo que o beijo com gosto de sorvete seja perfeito, a conchinha deliciosa e já se comece a rir no bom dia, pode parecer muito mais fácil seguir sozinha se "ninguém quer".

Não dá para saber se é possível superar as inseguranças múltiplas de uma relação a dois —quando é realmente só a dois e ninguém está apoiando. Ambos, no entanto, vão seguindo por 10 episódios. A gente segue também, suspirando diante da possibilidade de um brunch em família em que pode fazer tudo que estiver ao alcance para conquistar uma sogra ressabiada.

Não dá para mudar pelo outro, mas no estado de apaixonamento esquecemos tudo isso. Joanne parece estar em frente ao espelho dizendo para si mesma que pode, sim, ser uma princesinha. Mas ela é um mulherão e é complicado que furacões como ela caibam dentro de qualquer forma. A paixão que está sentindo, no entanto, é motor para fazer o impossível. A gente entende. E até torce para haver um meio termo.

Veja só: todo mundo ainda insiste na estranha mania de ter fé na vida. Mesmo ensimesmados, reféns do algoritmo, na segurança da sala de nossas casas, com potes de sorvete que não dividimos com ninguém.

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É preciso ter sonho, sempre.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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