Luciana Bugni

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Opinião

'Invejosa': série argentina fala de estereótipo que carregamos sem precisar

A cena é clássica de abandono paterno: duas menininhas estão sentadas à porta de casa esperando a famigerada visita de sábado do pai que abandonou a mãe mas prometeu levá-las no cinema. Só que ele não aparece naquele dia. Nem nunca mais.

A explicação só aparece lá pelo terceiro episódio da série argentina "Invejosa", que estreou recentemente na Netflix. A personagem Vicky conta que, após esse fato, assumiu a criação da mais nova, já que a mãe trabalhava muito. Como eram muito pequenas e não sabiam cozinhar, se alimentam de cereal —e, na caixa, uma ilustração mostrava uma família feliz que ela sempre almejou.

O trauma, o público vai entendendo no decorrer da história, molda sua personalidade. Ela é obcecada por casar. Dispensa um relacionamento estável porque o homem não se dispõe a oficializar. Cai doente cada vez que uma amiga a convida para o próprio enlace. Apronta as maiores presepadas porque segue o estereótipo de felicidade que criou para si durante o período nebuloso da infância.

Abandono é complicado mesmo. Quando a gente associa um projeto qualquer como a panaceia, não consegue parar de perseguir aquela ideia. Geralmente é um pena, porque obcecada por um objetivo qualquer é complicado ver as outras opções que a vida oferece. E oferece várias, viu?

A psicóloga de Vicky tenta avisar: "Temos vidas diferentes, somos distintas. Eu faço o que gosto. Quando você puder criar um mundo que goste, que possa defender, vai se importar menos com o resto", ela diz. A série chama "Invejosa" de tanto que a mulher projeta para si a vida de quem a cerca.

Não é uma novidade essa teoria de que é preciso casar para ser feliz. Mulheres de 40 anos então, ainda são coagidas pela injustiça de um relógio biológico rigoroso que dá prazo para ter filhos. Ressignificar esse sonho parece um objetivo distante para muitas pessoas. Mas peraí: é um sonho mesmo ou algo que construíram na nossa cabeça?

A inveja de Vicky poderia se dissipar caso ela percebesse a beleza de dançar sozinha em uma festa de casamento, como sugere a psicóloga. Já imaginou quem é você livre de tantos "quereres", só ouvindo a voz de dentro? —mas tem que ser a de dentro mesmo, não a que as lambadas da vida colocaram em você.

É claro, não dá para minimizar traumas de infância. O lance é correr para terapia e mergulhar neles de verdade para não ficar usando essa desculpa para ser infeliz. Tem muito mais oportunidade do que a gente imagina ali fora, é só abrir a porta. A vida não é um roteiro fechado construído por idealizações românticas na adolescência —e ainda bem que dá para mudar de ideia. Dançar sozinha em uma festa é uma ideia boa. Olhar o vizinho com outros olhos também pode funcionar.

Vocês que me perdoem o amontoado de clichê, mas ainda vou mandar uma sabedoria de Pequeno Príncipe para arrematar o domingo: o essencial é invisível aos olhos. O que Saint-Exupéry quis dizer é que o que precisamos não está em um véu, grinalda, ou mesmo no parceiro do lado. Está na gente mesmo. Não tem do que ter inveja nesse caso. "É só você quem pode decidir o que fazer para tentar ser feliz". Eita, e lá foi mais um clichê. Acontece. ;)

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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