Luciana Bugni

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Opinião

Flip: evento literário é um tipo de Disney de quem cresceu como nerd

Pelas frestas de uma janela azul de madeira das casas típicas de Paraty, ouve-se um culto. Aos brados, um pastor na televisão de um dos moradores da cidade fala sobre Jesus, arrebatamento e salvação. O som parece uma resposta à festa que acontece na casa da frente: pessoas conversam alto após o encerramento de um dia de palestras na Flip, evento literário que acontece anualmente no centro histórico da cidade. Pelas janelas escancaradas da casa que parece incomodar o paratiense religioso, ouve-se o som de um DJ que toca o que o pessoal chama de brasilidades. Várias queixas.

Nas ruas, as pessoas empolgadas falam sobre o assunto que me fazia passar os recreios da escola sozinha na biblioteca: livros. Um passeio despretensioso pela cidade dá uma estranha sensação de pertencimento à quem viveu o período escolar à margem da turma popular por gostar demais de atividades impopulares, como ler.

Na infância dos anos 1980 no ABC paulista, em uma casa de professores da rede estadual, havia livros por todos os lados. O Mickey não era assunto: para além de não termos dinheiro para ir à Disney, gostar do ratinho americano não era cogitado. Minha mãe nos envolvia com a leitura noturna do diário de Marco Polo e sorvíamos a incrível aventura com profundo interesse. Só soube há poucos anos que ela censurava a parte sangrenta da história. Nunca soubemos os nomes dos sobrinhos do tio Patinhas, mas sabíamos que as pessoas adoravam a Disney. A gente, não. Gostávamos de outras coisas, como Ruth Rocha e Lygia Bojunga Nunes. Meu sonho era ter uma bolsa amarela.

O acesso livre ao objeto e o incentivo dos mais velhos lá em casa funcionou. Sempre adorei livros. Mas não é o tipo de assunto que consigo emplacar com desenvoltura na mesa de bar normalmente. Exceto na Flip. Em Paraty, uma vez por ano, circulo como se tivesse, finalmente, encontrado minha turma. Adultos se acotovelam para acompanhar o insight de algum autor. Casas lotadas de pessoas em pé que fazem que sim com a cabeça podem até enganar: daqui, esse parece um país letrado e pensante. É a minha Disney, eu concluo olhando a igreja de Santa Rita como quem olha o castelo da Cinderela —se me esforçar bem, dá para ver até os fogos de artifício.

A sensação de pertencimento é tão grande que o olhar precisa estar atento para captar as sutis diferenças de um Brasil polarizado no perfil das pessoas que anda pelas ruas de pedra da cidade. A massa de visitantes anda confortável em sua bolha de pautas progressistas e projeta um país melhor para todos. Se um turista desavisado cair de paraquedas entre as casinhas tombadas, pode estranhar o ambiente em que citar o Ministério da Cultura é motivo de aplausos e escritores são tratados como celebridades. "A Flip é isso", alguém diz na rua, sem dizer muita coisa. "É o meu Carnaval", me fala uma mulher com uma sacola pesada cheia de literatura.

Os flipeiros se sentem mais em casa do que o morador que precisa colocar a TV no máximo para não escutar as conversas que acontecem à sua porta. O contraste é constante: enquanto o escritor Marcelo Moutinho explica sua roupa branca, cor de Oxalá, na sexta-feira, do lado de fora, ouve-se louvores entoado por algum transeunte. É ecumênico? Quase. O tema da conversa na Casa CCR é justamente as contradições do Rio de Janeiro no começo do século passado retratadas pelo cronista flanêur João do Rio.

Naquele tempo, o catolicismo dos portugueses e a macumba afro-descendente formavam uma cidade que queria ser Paris, mas virou outra mistura. João inaugurou uma maneira de andar pelas ruas e contar o que via — o surgimento do calçamento ajudou essa observação, pois dava para caminhar sem medo de cair. Ele gostava da modernidade francesa que o carioca tentava importar, mas via com maus olhos o eugenismo que tentou apagar a população marcada por séculos de escravidão. Dá para pensar de dois jeitos tão antagônicos? O escritor prova que sim. Não tinha rede social naquela época, então parece que era mais fácil mudar de ideia também.

No painel, Moutinho conta que decidiu trazer elementos de Madureira, o bairro suburbano carioca em que cresceu, para seus livros. Um cronista contemporâneo, no mesmo Rio contraditório, um século depois. A vida do Brasil profundo é distante do que se lia nas obras escritas pela elite. E nem precisa ir longe: é muito raro ver meu ABC em livros e nasci a apenas 30 km da capital paulista. "Eu vou citar esse lugar que não tinha em livro nenhum e algum menino suburbano vai se sentir representado", ele diz. O bairro natal que o afastaria da conversa com a elite é justamente o diferencial de sua literatura —e o que o coloca ali, em um local de destaque, falando para a mesma elite. Queremos seu olhar sobre Madureira tanto quanto queremos ver o Rio de 1910 que via João do Rio.

Emular bem

Mudar de ideia é especialidade do megainfluencer Felipe Neto, que está no palco principal do evento falando sobre o tema de seu livro, "Como Enfrentar o Ódio". Ao meio-dia, os termômetros marcavam mais de 30ºC e muita gente sua, em pé, para ouvi-lo falar sobre como incentivar os jovens à leitura. Ele explica como a igreja prega a submissão feminina como projeto de perpetuação da supremacia masculina. Imita um pastor ironicamente e reproduz o discurso empregado. É aplaudido. "É, eu emulo bem essa turma", ele se explica pela atuação convincente. Centenas de pessoas do que parece ser a outra turma riem.

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O prefeito eleito de Paraty é do partido Republicanos, o que confirma uma tendência direitista da população local. A convivência com os visitantes abertamente de esquerda durante os cinco dias de evento é harmônica —e a economia ferve como polvo na pressão servido nos restaurantes elegantes. Para se ter uma ideia, uma porção de seis ostras pode custar R$ 135. Mas também há hamburgueres a preços populares. Paraty para todos.

O privilégio de ser homem

"Ainda que fosse visto como uma figura excêntrica, João do Rio tinha o maior privilégio dos flaneurs: era homem", diz Bolivar Torres em uma reportagem do Globo. Mulheres, ele explica, não teriam a mesma liberdade para vagar pelas ruas. Eu lembro da reportagem lida há semanas enquanto "flanerizo" sozinha pela cidade. Em Paraty, dá para ser cronista sem sentir medo. Olho para o lado, uma senhora que faz crochê em uma cadeira de praia na calçada sorri. O calçamento de fato poderia facilitar um pouco esse tal de observar —ops, tropecei de novo.

Gaía Passarelli diz que é importante notar a borboleta amarela que passa. "Precisamos que a crônica funcione como um respiro. O absurdo cotidiano que vivemos parece não deixar espaço para isso, mas é justamente isso que possibilita viver", ela disse para Xico Sá em um dos paineis da Casa CCR. As crianças brincam na praça. Nos bares, os casais com roupas coloridas se beijam. Um homem observa o reflexo das construções em uma poça de água. Uma mulher toma um sorvete. Um senhor pede um café com caldo de cana. Uma moça fotografa um cachorro na porta de um bar e afirma ter em mãos uma obra de arte naquele clique. Há beleza em tudo que se vê.

Em uma festa, uma escritora hypada, um ator muito famoso e uma jornalista conversam animadamente. Uma influencer atende a um pedido de foto e sorri. O camarão com catupiry é servido dentro de um abacaxi. O músico no restaurante canta "Tocando em Frente". O drinque mais popular é o Jorge Amado, feito com a cachaça típica local, Gabriela (que, sim, tem sabor de cravo e canela).

"Mas vocês só falam de referências literárias, é isso?", perguntaria o Mickey com sua voz característica.

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Sim, é isso. Mas como vamos furar essa bolha e conversar com todo mundo?, minha consciência insiste em perguntar. Bem, Felipe Neto vai resolver essa para mim, só por cinco dias. Em Paraty, eu celebro a bolha e não passo o recreio sozinha nunca mais.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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