Christina Aguilera, Antonio Cícero e aqueles que preveem o que sentimos
Um amigo me escreve transtornado: quer que eu confirme se o boato de que a cantora Christina Aguilera estará no Brasil, no CarnaUOL 2025, é real. Eu não soube responder e tive de apurar. Depois de conversar com outro amigo, descubro que sim, é verdade. Conto para ele, que entra em surto: "Espero esse dia há 25 anos".
Porque os artistas mexem tanto com a gente? Me pego pensando na semana da morte do poeta Antonio Cícero. É dele a linda estrofe: "Eu espero acontecimentos. Só que quando anoitece é festa em outro apartamento", cantada por sua irmã, Marina Lima. Parece mágica para mim essa habilidade de traduzir "sentires".
Quem me traduz logo depois é Raul Seixas, enquanto eu dirigia. Ele me diz que eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista. Essa papo de gratidão mexe com a gente sempre que bate uma tristeza. Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73, eu reflito dentro do carro um tanto mais moderno que isso, mas achando isso uma grande piada, um tanto quanto perigosa. "Tenho uma porção de coisas grandes para conquistar e eu não posso ficar aí parado." O semáforo fica verde. Eu sigo.
Minutos depois, estou sentada em um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes e só não espero a morte chegar porque estou cheia também de roupa para pendurar. Quem vem é Mart'nália cantando Zélia Duncan: "Benditas coisas que eu não sei, os lugares onde não fui, os gostos que não provei". Os versos me atravessam como se eu os estivesse escutando pela primeira vez. Enquanto Raul critica a vida proletária que levamos enquanto nos perguntamos "e daí?", Zélia elogia a bênção do que ainda não sabemos.
É por isso que levantamos da cama todos os dias. Esperar os acontecimentos de Antonio Cícero. De nada adiantam os 4.000 cruzeiros por mês se não tem algo que te mova a seguir? O que são suas coisas grandes para conquistar? O pessoal e intransferível direito de acordar querendo algo mais, como um dia ver a cantora favorita de perto —aquele amigo desejou isso por 25 anos, não é maravilhoso?
O artista no lugar do outro
Outro dia estava escutando Chico Buarque cantando sobre a gente humilde em quem ele pensa em certos dias. O eu lírico ali, sabemos, é filho de intelectuais, passou parte da infância na Itália, vive na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas diz que quando passa no subúrbio (ele muito bem, vindo de trem, de algum lugar), sente "inveja dessa gente que vai em frente sem nem ter com quem contar". E é o verso quase final que mais me toca: "eu que não creio peço a Deus por minha gente". Se colocar no lugar do outro a tal ponto em que o ateísmo se converte em uma estranha fé a partir do despeito de não ter como lutar pelo próprio povo. E, sim, isso dá vontade de chorar mesmo. A arte cai muito bem.
"Gente Humilde" também está no repertório de Bethânia no show com Zeca Pagodinho, de "Santo Amaro a Xerém". Ali, a vejo cantando "O xis do Problema", de Noel Rosa — uma música feita há 88 anos, mas atual na voz da artista. Ela emenda "Ronda", de Vanzolini, que narra a busca de alguém por seu amor pelas ruas de São Paulo, sem encontrar. "O sonho alegria me dá, nele você está". Duvido que alguém não abraçou esses versos e dormiu chorando baixinho? É como se o poeta pudesse nos tocar nos ombros para dizer "ei, calma" e garantir que não estamos sozinhos. Ter companhia é bom demais.
Cora Ronái trouxe essa reflexão em uma de suas colunas. No texto, ela compara a arte a uma vacina. Se já ouvi a voz de Bethânia explicar a ronda de Vanzolini, saberei lidar com o fato de buscar um amor perdido por aí e voltar para casa abatida. Aquilo que consumimos, que alimenta a alma, vira parte da gente.
A dor que sai no jornal às vezes
Em uma pausa no trabalho, nessa manhã, folheando o jornal, dei de cara com o obituário de Tavinho Paes, poeta e artista carioca. Ele faleceu na quinta (31). Fico atônita: é de Tavinho um dos versos que me acompanhou em diversas fases de extrema importância da minha vida na cidade maravilhosa. "O Rio de Janeiro não perdoa", é um tipo de ronda carioca que ele fez em parceria com Arnaldo Brandão. "Zanzei as tontas pelas ruas da cidade/ Na minha vida eu nunca me senti tão só/ O Rio de Janeiro não perdoa, aqui até o amor que dói, quando dói fica melhor", ele canta. A letra segue: "Diga lá, desejo meu, você conhece o Rio bem melhor que eu/ Eu vou sair farejando sua pista/ Não dá para apagar o que o destino escreveu/ O Rio de Janeiro não perdoa/ Aqui teu ponto fraco tem que ser o emocional", diz.
Gostaria de contar para ele que o verso-título da canção desconhecida foi minha vacina. Cada vez que alguma guinada emocional atingia meu ponto fraco, lembrava que o forte daquela cidade não é o perdão, não. E ficava forte. Forte por causa de uns versinhos, Luciana? Pois, é. Acredita?
"Morto eu devo valer uma nota, nem que seja nota de obituário", disse Tavinho Paes em uma entrevista. Dos artistas que me fizeram aflorar essas linhas, Raul e Paulo também estão mortos. Depois de trabalhar no jornalismo por alguns anos, Tavinho passou a dizer que só escrevia notícias que ainda vão acontecer. Bela metáfora para falar daquilo que ainda vai rasgar a gente. Mas estaremos vacinados e acompanhados pela poesia.
Christina Aguilera, vivíssima, vai cantar no Brasil, e meu amigo estará colado na grade para vê-la. Bonito sentir tanto algo. É por isso que a gente levanta da cama? Vai ver é sentir "a porção de coisas grandes" às quais Raul se referia. Saber dizer o que outro sente (e nem entende) ou vai sentir ainda (quem sabe?) devia realmente valer uma nota.
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