'Disclaimer': para homens, traição feminina é mais inaceitável que estupro
Se você não assistiu à comentada série "Disclaimer" (Apple TV) e detesta spoilers, melhor nem seguir a leitura. Não dá para discutir a traição que norteia a trama sem abordar o último capítulo. É ali que finalmente a mulher tem sua voz ouvida e sua versão assimilada pelo bando de homens que a está crucificando há sete episódios.
Catherine (Cate Blanchett, em sua fase madura, e Leila George D'Onofrio, na juventude) é a protagonista da série. Uma documentarista premiada que recebe um livro em casa. A obra descreve em detalhes uma tórrida noite de sexo que ela teve há 20 anos, durante uma viagem à Itália, com um jovem fotógrafo.
Desesperada com o segredo revelado, Catherine queima o livro. Mas pessoas próximas recebem os exemplares e um combo de fotos da jovem garota, nua, sorrindo para as lentes de seu amante.
O escândalo é agravado pelo contexto da tragédia: o jovem morreu afogado no dia seguinte, enquanto tentava salvar o filho de Catherine, então com cinco anos. A mãe, que dormia na areia, não percebeu o quase afogamento do filho e parece ter sido conivente com a morte do rapaz.
Uma mulher que transa fora do casamento, não cuida bem do filho e ainda deixa o amante morrer fazendo o que ela deveria ter feito. O rótulo de vilã é carimbado em sua testa por todos que a cercam.
O filho, adulto, a acha ausente —apesar de ela passar a série toda tentando ser legal com ele. O marido, quando vê as fotos, a escorraça. Ele não cogita voltar a falar com a mulher que o traiu nem quando o filho fica entre a vida e a morte.
Não há um amparo, um cuidado, um olhar de compreensão. Os colegas de trabalho a cancelam. O pai do rapaz morto, então, passa os dias pensando em novas maneiras de destruí-la —ele acredita que Catherine não ajudou o rapaz no afogamento e foi cúmplice de sua morte.
Um fato isolado há 20 anos é mais grave que o comportamento das duas décadas seguintes. Não dá para respeitar uma mulher infiel, né?
Bom, vou começar aqui a falar o fim da história:
Depois de todo tipo de humilhação, descobrimos que Catherine foi estuprada. As fotos nuas sorrindo foram feitas a pedido do violentador sob ameaças de uma faca. A criança dormia no quarto ao lado.
Ela temia pela vida do filho enquanto era violentada por 3h30, sem parar. Ela nunca falou sobre isso para ninguém porque o garoto morreu no dia seguinte. Ela decidiu enterrar o pesadelo ali, com o corpo do criminoso. Até que o livro surge e a violência continua, 20 anos depois.
Mas o surpreendente é que, para o marido —e, grifo meu, para o público masculino da série—, a partir do momento em que a violência sexual fica comprovada, toda a raiva passa. É quase um: "Ufa, que bom, minha mulher não QUIS ser penetrada por um estranho, ela só foi forçada violentamente a fazê-lo".
Como o crime tem todas as características de um estupro clássico, não dá mais para culpar a protagonista por nada. "Você parece quase aliviado por se tratar de uma violência e não de desejo", ela diz ao marido.
O público masculino suspira meio agoniado porque todo mundo estava se sentindo assim. É mais palatável descobrir que uma mulher foi forçada brutalmente a fazer sexo fora do casamento do que ter sentido desejo por outra pessoa. Que mundo é esse?
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Quero receberNão dá para levantar a bandeira da traição, claro. Isso destrói famílias e magoa pessoas. Mas é fundamental ter em mente que as pessoas erram. Há 20 anos, então, errávamos muito mais. O grande drama que se dá durante sete horas de série é ver que uma mulher está sendo perseguida, mas não pode ser defendida, merece ter sua vida destruída —afinal, ela TRAIU O MARIDO.
A construção da nossa sociedade sobre o alicerce bambo da masculinidade frágil é uma bomba nos afetos. Essa metáfora improvável da série nem é tão improvável assim.
Quantos homens em relacionamentos heterossexuais considerados saudáveis preferiam que as mulheres tivessem sido estupradas do que sentido e concretizado o desejo por outro cara? A questão não é a penetração em si. E ela ter gostado de ser penetrada. Pelo amor de Deus. Eu fico tão indignada que nem sei.
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