Compartilhar foto de feto, como fez Nigro, arrasta muitos ao buraco da dor
No começo de 2024, conversei sobre gestação com 40 mulheres para o Materna, projeto do UOL de conteúdo para mulheres grávidas. Elas me contaram histórias emocionantes sobre os filhos, mas vários relatos começavam com gestações que não vingaram e terminaram em abortos naturais. Engravidar de novo foi o passo seguinte de um sofrido processo de luto. E deu tudo certo no fim.
O assunto aborto espontâneo não costuma ser muito comentado —é uma perda sem funeral, uma tristeza sem nome e uma dor solitária para o casal.
Até a hora em que Maíra Cardi compartilhou em suas redes sociais o momento em que, em uma consulta de rotina, descobriu que o coração de seu embrião não estava batendo. É comum que isso aconteça até a 12ª semana, por isso muitas mulheres esperam dar três meses para divulgar por aí que serão mães. Maíra estava na 8ª semana. Tristíssimo, mas acontece mesmo.
Quando ela divulgou o vídeo da consulta, muita gente achou que aquilo poderia ser um gatilho para outras mulheres. Lembrar esse momento, sem sobreaviso, ao navegar no Instagram, seria doloridíssimo para dezenas de mulheres que eu entrevistei no ano passado. Seu marido, Thiago Nigro, foi além: divulgou um vídeo em que o feto aparece. Na legenda, ele afirma que dá para ver os dedinhos se formando. Parece um carinho de um pai em luto, mas há outras facetas ali.
A legalização de algo que ninguém quer fazer
Abortar nunca é um momento feliz —mesmo quando é uma escolha. No mundo, há 77 países em que abortar é legalizado. Isso representa 34% da população de mulheres em idade reprodutiva do mundo. Mesmo para essas, que têm a opção legal de interromper gravidezes indesejadas, a decisão é complexa.
Há um cena na série australiana "Please Like Me", de Josh Thomas, que mostra esse momento. É quando Claire, personagem da lindíssima Caitlin Stasey, percebe que diante do teste positivo a melhor opção é o aborto. Ela está triste, tristíssima. E consciente. É o que precisa fazer naquele momento com o suporte da saúde pública de seu país. As cenas são sensíveis e qualquer um com o mínimo de empatia entende a escolha do outro. Ser pró-vida independe de escolhas religiosas, às vezes. Claire, na série, foi pró a própria vida. E, mesmo assim, doeu.
Muitas mulheres como ela fazem abortos ilegais no Brasil. Algumas, com dinheiro, em clínicas clandestinas que as tratam bem. Outras tantas em locais traumáticos que se assemelham a açougues. Há outros métodos caseiros muito violentos. E todos machucam justamente porque essa não é uma decisão fácil.
Imagine o post de Nigro para essa mulher, que mesmo com todo o peso da escolha optou por abortar porque era menos doloroso que ter o filho? Famílias expulsam garotas grávidas de casa, por exemplo. Dá para julgar?
Ter filho não é fácil. Engravidar e ouvir o coraçãozinho é mágico e assustador em iguais proporções. Para optar pela magia e colocar alguém legal no mundo é preciso de estrutura, rede de apoio, suporte financeiro e preparo psicológico. Quem recua diante do susto precisa também de empatia.
E tudo, tudo isso, só pode ser vivido com uma boa dose de introspecção —como em Please Like Me (que está na Netflix e é excelente, não só por isso). Compartilhar a dor para 3 milhões de seguidores é um projeto religioso que não ajuda o futuro pai, agora enlutado. E ainda arrasta muita gente que ele nem conhece para um buraco de dor que é difícil de cicatrizar.
Para todas as mulheres que foram feridas com essa postagem, o abraço mais sincero.
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