Luciana Bugni

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Opinião

'Beleza Fatal' nos traz conforto de consumir exagero proposital das novelas

"Ninguém entra em um galpão escuro em uma rua suspeita sozinha." Esse é um pensamento comum para quem está assistindo ao penúltimo capítulo de "Beleza Fatal". O alívio imediato vem na sequência: é uma novela. E em novela pode tudo. O último episódio, aliás, será transmitido hoje, no streaming da Max, e está fazendo um barulho daqueles nos grupos de WhatsApp e redes sociais. É o título local mais assistido no Brasil desde o lançamento da Max.

Vale colocar filho policial para indiciar a mãe, vale quebrar um Fusca inteiro com uma enxada de jardim, vale conter um ataque histérico com um balde de água fria (literalmente), vale desenrolar um sequestro com começo, meio e fim em cerca de 10 minutos. Vale tudo (perdão pelo trocadilho). Tramas novelescas são a autopermissão para ver (feliz) aquilo que nos faria reclamar de inverossimilhança no consumo de qualquer outro produto audiovisual.

Novela é patrimônio brasileiro. Quando Jacques Audiard, diretor de "Emilia Perez", foi indagado sobre o perfil novelesco de seu controverso filme, respondeu que não tinha intimidade com o gênero. O brasileiro lê a frase com um risinho debochado de canto de boca. Tadinho do Jacques, não entendeu nada. Fez uma novela em um dos países especialistas no gênero, o México, sem nem saber o que era uma novela —deve ser por isso que errou tanto. Não saber o que era o México e não chamar os mexicanos para ajudar contribuiu para o desastre.

Tido como "menor" por grande parte da classe artística, a gente aqui do lado de baixo do Equador sabe o valor de um novelão faz tempo.

Por isso, passa oito meses esperando o vilão assumir que é gay e beijar um mocinho (saudades, Félix). É capaz de rever mil vezes Glória Pires se transformar em uma vilã asquerosa na mesma cena em que vive a recatada irmã boazinha. Repete o R raspado de "Rrrrrrrita" como Adriana Esteves até hoje. Também fica impressionado que o corpo e rosto de Claudia Ohana pouco mudaram desde sua Natasha, em 1991. Não dá para ouvir Lara Fabian sem chorar com a careca de Carol Dieckmann. É impressionante: gostamos disso desde o tempo em que gostávamos da Regina Duarte.

Novela é cultura, é patrimônio, é lazer. Não tem erro. Até quando você passa raiva com Camila Queiroz quebrando a casa da mulher que a acolheu na infância e a criou, é um passar raiva com gosto. Na hora, tudo fica menos importante. Joga mais água fria nela, Giovanna Antonelli.

O apelo é tamanho que trama boa vira outro tipo de entretenimento. Por exemplo, a pesquisadora Cintia Marcucci pegou essa paixão nacional e traduziu a cultura em mais cultura. Ela estuda a sociedade brasileira pautada em novela antiga. O preço da laranja, a variedade do café da manhã e a onipresença da jarra de abacaxi e do filtro de barro. Sério, não vai ter uma série no catálogo gringo que traduza o cheiro da casa da nossa avó tão bem quanto um vitrozinho de cozinha e Regina Casé com um pano de prato no ombro —ai que saudade da Dona Lourdes. Cintia dá aula sobre o assunto e atualiza as novidades em seu perfil Comida de Novela no Instagram.

Pega essa, Audiard, novela é um jeito de entender a sociedade em que estamos inseridos —imagina quão complexo é entender a sociedade em que nem inseridos estamos, como deveria ter feito a turma de "Emilia Perez".

Todo mundo está meio corrido. John Kaag, professor na Universidade de Massachusetts, afirmou no último SXSW que lemos hoje, em um único dia, o mesmo que Voltaire leu a vida toda. Não é raro que eu me pegue tentando interpretar um artigo acadêmico e deixando informações para digerir em uma suposta segunda leitura que nunca vai acontecer. "Será que estamos absorvendo conhecimento ou só engolindo mais informação?", ele pergunta. A resposta óbvia dá uma sensação de muito trabalho em vão.

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E se parássemos tudo para ver uma novelinha no fim da noite, como faziam os astecas, digo, a gente mesmo em vidas passadas? Deixa essa nuvem do que ficou por pensar-ler-fazer-consumir para lá. A Camila Pitanga com um lenço na cabeça para cobrir a tatuagem forçada que diz "assassina" está tomando espumante e aplicando botox no rosto enquanto chora. Nada pode ser mais importante que isso.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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