"Globo não é mais o umbigo do universo, o que é bom", diz ex-editor do JN
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Gabriel Priolli conhece a televisão por todos os lados. Jornalista, trabalhou em diversos canais nas mais variadas funções. Crítico de televisão, cobriu o setor por mais de 25 anos para importantes jornais e revistas. Como professor, ensinou telejornalismo para uma geração de alunos. E, ainda, militou em diferentes instâncias em prol de experiências de TV públicas.
Desde 1975, Priolli foi repórter, editor, apresentador, produtor, diretor e criador de programas, diretor de programação, de jornalismo e de rede nas TVs Cultura, Globo, Band, Record, Gazeta, Canal 21 e TV Escola. Escreveu na Folha, Veja, Estadão, Época, Gazeta Mercantil, Carta Capital e revista Imprensa.
É esta experiência acumulada que Priolli pretende transmitir no curso, que ele está chamando de minissérie, intitulado "Túnel do tempo - Como Viemos da TV a Lenha para Milhões de Canais". Ele será ministrado entre 21 e 24 de setembro, no centro cultural B_arco.
O título e o formato do curso são inspirados na série americana "Túnel do Tempo" (1966-1967), exibida no Brasil. Em cada aula (ou episódio) Priolli vai tratar de um período da televisão no Brasil, dos primórdios aos dias de hoje.
Em entrevista ao UOL, Priolli fala sobre temas que abordará no curso e também sobre os 70 anos da televisão no Brasil. Ele lamenta a falta de pluralidade hoje na TV, critica o desmonte da TV pública no país, faz restrições à forma como Walter Clark foi retratado na série "Hebe" e analisa a situação atual da Globo, tema de um livro seu. "A Globo não é mais o umbigo do universo, o que é bom", diz. Abaixo a entrevista.
Você vai dar um curso com um título muito instigante: "Como Viemos da TV a Lenha para Milhões de Canais". Olhando no túnel do tempo, do que você tem saudades em matéria de televisão?
Gabriel Priolli: Debate político. Tinha todo dia na TV aberta, de segunda a sexta, no Programa Ferreira Neto. Também era diário no programa de Alberto Helena Júnior, semanal no Mino Carta, tinha muito debate. Com todas as correntes políticas representadas, excluídas apenas as extremistas, corretamente. Hoje não tem debate nem nos canais segmentados e sequer na televisão pública, o que é escandaloso. O que há são simulacros, "debates" onde todos pensam igual e onde a esquerda não entra mais. A contribuição desses programas à democracia é zero.
Ainda olhando em retrospectiva, nestes 70 anos de TV, qual fato ou inovação você considera mais importante pelas mudanças que provocou?
Foi a tecnologia do videoteipe, sem sombra de dúvida. Lançada comercialmente em 1956 nos EUA, introduzida aqui na virada para os anos 1960. Foi uma revolução na televisão da época. O VT permitiu a cópia e reprodução dos programas que até então eram feitos ao vivo. Iam para o ar, literalmente; dissolviam-se. Todo o investimento feito neles tinha de se ressarcir numa única emissão, o lucro era baixo. Com o VT, foi possível gravá-los e vendê-los a outras emissoras. As principais, do sudeste, que concentravam o melhor do talento artístico nacional e faziam os melhores programas, se capitalizaram rapidamente. E as relações comerciais que estabeleceram com as emissoras regionais, suas clientes, deram origem, mais tarde, às redes nacionais de TV.
Depois, na virada dos anos 1980, foi o equipamento doméstico de vídeo, tanto os reprodutores quanto as câmaras, sobretudo no formato VHS. Esse dispositivo criou um novo mercado, o Home Video, voltado sobretudo ao aluguel de filmes - o primeiro rival da TV saído dela mesmo. O telespectador passou a dividir o seu tempo entre a televisão e o videocassete. Mais importante ainda, considerado o quadro de hoje, é que as câmaras de vídeo amadoras deram ao cidadão comum o poder de gravar imagens. Foram as avós do vídeo no celular, que hoje é onipresente no planeta e vai reconfigurando o mundo audiovisual.
Em "A Deusa Ferida", livro que você ajudou a fazer, em 2000, é detectado o momento em que a Globo começa a perder audiência, deixando de ser campeã absoluta. Hoje, 20 anos depois, qual é o lugar que a Globo ocupa no sistema de televisão?
O sistema de televisão é hoje muito maior do que as emissoras abertas e as segmentadas, da TV por assinatura. É uma grande galáxia de audiovisual eletrônico, que deve necessariamente incluir as diversas plataformas na internet que distribuem vídeo, sobretudo YouTube, mas também Vimeo, Twitter, Facebook, Instagram e, agora, Tik Tok.
Nessa galáxia, a Globo perdeu a centralidade, não é mais o umbigo do universo, que agora tem justamente a característica de ser multipolar. Mas ela ainda é a principal rede de TV, a mais rica, a mais influente, a mais poderosa, ainda que não seja aquele quinto poder do Estado que já foi. O que é muito bom para a democracia, a meu ver, embora ela certamente tenha outra visão.
Você concorda com a ideia de que os serviços de streaming vão acabar com a TV por assinatura, que oferece centenas de canais?
Não. O que está mudando é a forma de prestação do serviço de TV por assinatura. Atualmente, os canais pagos dividem espaço com a internet, nas operadoras de cabo e de satélite. E eles estão lançando plataformas de streaming, que o público recebe pela internet. O assinante de um pacote da NET, por exemplo, recebe as duas coisas, TV e internet. Pode optar se vai sintonizar a Globo diretamente, no canal da operadora, ou se vai vê-la na Globoplay.
Acho que, progressivamente, as operadoras vão utilizar a sua infraestrutura para distribuir mais internet do que TV, reduzindo ou até suprimindo esse serviço. Mas o assinante de internet seguirá pagando. Pelo sinal, às operadoras e pelo conteúdo, às programadoras, aos canais. Portanto, a TV por assinatura sobreviverá, sob outro formato.
Você é um conhecido defensor da TV pública e de experiências democratizantes da televisão. Como você enxerga o atual momento da TV Brasil? E da TV Cultura?
O projeto de televisão pública que eu e outros tantos defendemos está em crise profunda. Agônica, eu diria, nessa era em que domina o credo neoliberal, privatizante. Para que a TV pública exista como tal e cresça, é preciso que cidadania e espírito público sejam conceitos disseminados e enraizados. Precisa da consciência de que o mercado não pode, nem deve, fazer tudo sozinho. Avançamos por alguns anos nessa direção, mas tudo voltou atrás, à estaca zero.
Predomina a ideia de que a TV pública só se justifica se der grande audiência, quando ela existe justamente para oferecer conteúdos que dão menos audiência. Conteúdos alternativos, qualificados, de relevância cultural e não mercadológica, fora do gosto da grande massa. A mentalidade privada dominou e corrompe a TV pública, que não é a antítese da TV comercial, mas alternativa, complemento.
A complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de televisão, princípio consagrado no artigo 223 da Constituição, deixou de ser um projeto em marcha, voltou a ser letra morta. A legislação que instituía a TV Brasil como televisão pública foi revogada por Temer. Agora, sob Bolsonaro, ela é uma estatal que pensa e programa como uma emissora comercial, e pode até ser incluída nas privatizações. Da mesma forma, a TV Cultura e outras. As bravas exceções estão penando, na falta de recursos de sempre e no desdém das comunidades a que elas servem.
Você foi crítico de televisão por muito tempo na imprensa (Folha, Estadão, Veja), entre as décadas de 1980 e 1990. Que problemas da TV que te incomodavam como crítico permanecem sem solução ainda hoje?
Eu sempre tive foco na questão da pluralidade de conteúdos na televisão. Sempre achei que o meio é importante demais, influente demais, para oferecer programação pouco variada e jornalismo de orientação editorial monotemática. Por isso, sempre considerei a questão da democratização da TV, do acesso dos diversos agentes culturais aos canais, da abertura deles à produção independente, da destinação do espectro radioelétrico -- um recurso público precioso -- para novos canais, concedidos por critérios democráticos, includentes.
Em boa medida, a pluralidade avançou. Temos mais canais de TV e mais produtores trabalhando com eles. Mas a ampla maioria deles só oferece mais do mesmo. Não há diversidade real de conteúdo. A democratização ampla, a inclusão de segmentos culturais e artísticos que não operam com a lógica de mercado, não se deu nem se dá na televisão. Acontece na internet e, ainda assim, com limitações e controles "algorítimos". A baixa diversidade da TV ainda me incomoda, muito.
Você é coautor de "O Campeão de Audiência", a autobiografia do Walter Clark, um dos mais importantes e visionários executivos da televisão brasileira. O que achou da forma como ele foi apresentado no filme e na série dedicada a Hebe Camargo?
Decepcionante, porque inteiramente falsa. Vi o primeiro episódio e ele constrói uma narrativa em que Walter Clark é o executivo covarde da TV Bandeirantes, que quer tolher a liberdade de expressão de Hebe para não incomodar o governo autoritário. O conflito que eles tiveram em 1981 não teve nada a ver com censura. Walter queria modernizar a programação e achava que Hebe tinha um estilo ultrapassado para o seu projeto. Fritou a estrela veterana enquanto pode, para forçar a sua saída. Mas acabou demitido antes de afastá-la.
Hebe foi censurada 15 anos depois — e no SBT. Começou a fazer comentários políticos e, num deles, aludiu a corrupção no Congresso Nacional. Houve reação dos parlamentares, Silvio Santos sentiu-se pressionado e proibiu a transmissão ao vivo do programa dela, que passou a ser gravado e verificado antes de ir ao ar. Conto isso em meu livro ainda inédito, "O Trânsito dos Astros".
Roteiristas podem tomar liberdades nas histórias com personagens reais, alterando a cronologia e circunstâncias menores. Mas não podem falsear o personagem, apresentá-lo como alguém que não foi. Foi o que fizeram com Walter Clark. Vivemos num país sem memória, que não valoriza o conhecimento da história. Por isso mesmo, está fadado a repetir e repete sempre os velhos erros. A televisão serve a isso, quando é desatenta ou irresponsável na reconstituição de fatos e personagens históricos.
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